domingo, 23 de dezembro de 2007

A cada Natal e a cada Ano Novo!!!

A cada Natal e a cada Ano Novo me vejo as voltas com mensagens para os mais diversos grupos e pessoas queridas para as quais desejo dizer algo muuuuuuuuuito especial.

E é interessante que, por mais que haja uma marca muito comum que unifica esse universo, quando acho que encontrei o tom e as palavras certas, me dou conta que há particularidades de um ou de outro que ficaram de fora, e então, continuo a busca e..., haja Drummond para dar conta!!!

Impõe-se ampliar e abrir outras possibilidades.

No caso dos (as) leitores (as) desse blog, que em comum, penso, terem o desejo, a missão e a tenacidade para a construção de uma sociedade mais justa, baseada em valores, sentimentos e gestos que a cada dia estão mais escassos, como solidariedade, mão estendida, tolerância, afago, respeito, paciência, igualdade, reconhecimento do outro, respeito a biodiversidade e a diversidade social, cultural, política, optei por uma canção que fala da construção, do sonho, do trabalho, da solidariedade e da tenacidade, para continuarmos inspirados e no ano de 2008 nos sentirmos mais fortalecidos para a nossa luta e para a nossa construção.

É uma composição de Daniel Viglietti, cantor e compositor uruguaio, de forte conteúdo social e de esquerda que nos duros tempos da ditadura ficou exilado por 11 anos. Andando pelo mundo denunciou as ditaduras latino-americanas e uma das canções que compôs, “Las hormiguitas”, fala, valendo-se de uma analogia com as solidárias formigas, de sua luta e a de seus companheiros (as) para a libertação do planeta: “(...) cruzan los mares, cruzan los cielos dejando atrás el temporal, la casa rota, el pie asesino, la vida herida por ese mal, el temporal(...)” (...) Siguen andando sobre la tierra, sobre los cielos, sobre los mares, multiplicando hojas y flores, acumulando verde energía (…)”.

Não encontrei vídeo para disponibilizar no blog, o que me entristece muito, pois a música é uma delícia e eu adoraria compartilhá-la com vocês. Em especial porque é de uma leveza e doçura que lembra canções para crianças. ENTRETANTO, quem quiser ouvi-la pode baixá-la pelo eMule ou pode me solicitar que ENVIO.

Para tanto, ao final dessa postagem (da letra da música), você encontrará comentários. Clicando ali, solicite que enviarei imediatamente.

Um forte abraço e um FELIZ 2008!
Iara Borges Aragonez

Ah! Estou colocando o vídeo com a música “Tocando em Frente”. Gosto demais e aproveito para compartilhá-la com vocês.


Las hormiguitas
(Daniel Viglietti)

Las hormiguitas blancas y azules
con su carguita cruzan la tierra,
cruzan los mares, cruzan los cielos
dejando atrás el temporal,
la casa rota, el pie asesino,
la vida herida por ese mal,
el temporal.

Pero los sueños y los caminos
las hormiguitas no dejarán;
los van cargando con la ilusión
de un circo en viaje hacia la función.
Si les preguntan dónde trabajan
contestan siempre ”en la construcción”,
la construcción.

Las hormiguitas carpintereando,
albañileando, pintarrajeando,
imaginando, desolvidando,
enamorando y hasta cantando
van caminando y acumulando
verde energía, mucha esperanza,
mucha esperanza.

Siguen andando sobre la tierra,
sobre los cielos, sobre los mares,
multiplicando hojas y flores,
acumulando verde energía,
mucha esperanza, mucho buen día,
para su viaje que es circular,
es circular, va a terminarse
para empezar.

Las hormiguitas son muy tenaces,
las cicatrices van a cerrar,
con sus hojitas de yerba mate
las hormiguitas se sanarán.
Pocos comprenden su largo viaje,
¿por qué salieron si han de volver?
Han de volver.

Todas chuequitas las hormiguitas,
son solidarias como un panal.
Todas chuequitas las hormiguitas,son solidarias como un panal,
pero si encuentran el pie asesino,
pica que pica, lo atacarán.
¡Lo atacarán!

Las hormiguitas que yo les canto
son tan chiquitas que ni se ven,
pero los sueños que van cargando
tienen la altura que tiene el bien,
el bien de toda naturaleza
que en esta tierra pide un lugar.

Las hormiguitas nunca se pierden
porque su viaje es circular,
es tan redondo como los ojos
de un ser humano al despertar,
es tan redondo como el planeta
que vamos juntos a liberar.
¡A liberar!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

A Cara Brasileira do Comércio Justo em Construção

Iara Aragonez*
Miriam Langenbach**
Boas notícias!

Dois sistemas públicos buscam integrar-se e atuar de forma articulada: O Sistema Nacional de Comércio Justo – SNCJ e o Sistema de Comercialização de Produtos da Agricultura Familiar e Economia Solidária – SECAFES.

A Agricultura Familiar Ecológica - AF e a Economia Solidária – ES trabalharam juntas por três dias, visando construir coletivamente outro tipo de comercialização.

Em Brasília, de 10 a 12 de dezembro de 2007, o Instituto Faces do Brasil , juntamente com dois ministérios, Desenvolvimento Agrário e Trabalho, através de suas secretarias, Secretaria do Desenvolvimento Territorial - SDT e Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES , o Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES, mais a União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária – Unicafes e a Ecojus, reuniram-se com representantes de algumas das 25 experiências pioneiras de comercialização solidária, pesquisadas pelo Instituto Faces, além de outros grupos de economia solidária e agricultura familiar, para traçar as linhas gerais de uma política de Comércio Justo para o país.

Este Encontro foi um marco no que se refere à construção de uma cara brasileira para o comércio justo.

O que conhecemos hoje com esta denominação é a compra por paises "ricos" de produtos de países "pobres", visando contribuir com a superação das dificuldades enfrentadas pelos pequenos quanto ao acesso ao mercado consumidor. Outros referenciais, diferentes aos do mercado capitalista, orientam a transação, porém predomina a relação internacional.

Esse modelo de comércio é insuficiente e não plenamente satisfatório. O Encontro em Brasília inaugura um novo tempo. Buscou explicitamente avançar na construção de um modelo justo de comercialização baseado em transações dentro do país orientadas pelo desenvolvimento local e sustentável. O equilíbrio ambiental e social ganha centralidade, diferentemente do comércio ao qual estamos acostumados, que valoriza com absoluta prioridade o lucro.

Para isto, setores da sociedade civil e governo estão apresentando instrução normativa, que está para ser aprovada, mostrando os critérios a partir dos quais um empreendimento (da economia solidária ou da agricultura familiar) pode ser considerado do comércio justo. Isto envolve ainda a implantação de um selo, que dará legitimidade àqueles que estiverem de acordo com a lei.

O Mapeamento realizado pela Secretaria Nacional de Economia Solidária já identificou aproximadamente 22.000 empreendimentos solidários no território nacional, representando em torno de 2 milhões de trabalhadores.Verificou-se que 70% destes empreendimentos são da agricultura familiar. A agricultura familiar, é bom que se saiba, representa 85% da mão de obra no campo e produz 70% dos alimentos que os brasileiros consomem no dia-a-dia.

É Importante salientar alguns indicadores debatidos que permitem afirmar que uma determinada prática está dentro dos critérios do comércio justo. Do ponto de vista social e da gestão, destacamos aspectos que devem estar presentes em toda a cadeia produtiva, da produção à comercialização e ao consumo. A autogestão - administração coletiva e democrática do empreendimento - a transparência, preços justos, a ausência de exploração do trabalho, equilíbrio entre homens e mulheres, dentre outros.

Do ponto de vista ambiental, a preocupação com a recuperação e preservação da natureza, no campo e na cidade, é fundamental. Uma agricultura sem agrotóxicos e não transgênica. A preocupação com o lixo, buscando sua minimização, seja pela adoção de embalagens retornáveis, pela eliminação de sacolas plásticas e adoção de sacolas permanentes, como também pela busca de formas de reaproveitamento e de destinação à reciclagem.

Do ponto de vista do consumidor, o comércio justo propõe o acesso mais amplo possível à informação sobre a origem do produto, o que inclui quem o produz e o processo produtivo adotado.

O Encontro em Brasília foi também para socializar a pesquisa realizada pelo Instituto Faces do Brasil, com 25 experiências pioneiras em busca de uma comercialização solidária e justa. O objetivo era checar se os atributos acima descritos estavam presentes no seu cotidiano. Será que o que está sendo proposto como norma é realista? Acontece? O sentido maior da pesquisa é subsidiar a formulação de políticas públicas que apóiem e fomentem estes dois grandes setores da economia: a economia solidária e a agricultura familiar ecológica.

Foi constatado que em menor ou maior medida os grupos orientam-se por estes princípios, ainda que não de forma homogênea.

Um valor muito significativo para o comércio justo é a não exclusão, o que nos leva a pensar em processos de transição, que viabilizem a incorporação de atributos ainda não atingidos. Não somos perfeitos, mas o importante é a presença da intenção, da disposição para a mudança, do ponto de vista ambiental e social.

Importante ressaltar que vinculado à instrução normativa e ao selo, está se organizando outra forma de certificação, o Sistema Participativo de Garantia, que conta com a participação de produtores, técnicos e consumidores num processo autogestionário e onde os critérios acima especificados serão verificados. O valor desta proposta está na construção do conhecimento e confiança entre as partes, dispensando-se uma verificação externa paga, consequentemente inacessível para muitos e que apenas pontualmente está presente. Este sistema participativo de garantia (as bases participativas de garantia) está sendo construído pelos produtores e consumidores e deverá ter reconhecimento por lei.

A sociedade civil, presença majoritária no encontro sentiu-se apoiada pelo empenho dos setores do Governo presentes, que se propõem a implantar políticas públicas que propiciem esta outra forma de economia.

Um dos acordos realizados no Encontro foi o de buscar a priorização de produtos da agricultura familiar ecológica e da economia solidária nas compras públicas. Se imaginarmos o que isto significa, desde os cafezinhos, até a parte alimentar de cantinas, e muito especialmente a merenda escolar e o alimento em hospitais, presídios, etc., é muita coisa!

O avanço destas novas práticas de produção e de comercialização encontra enormes impedimentos, necessitando de apoio financeiro para investimento em transporte, espaço físico, administração, questões ligadas a logística e tantas outras.

A apresentação das experiências mostrou enorme riqueza e criatividade. Mencionaremos aqui apenas algumas, como o Projeto Esperança / Cooesperança, com a Irmã Lurdes conosco, nos contagiando com o seu entusiasmo e nos ensinando com a sua experiência. Organizadora, desde 1994 da Feira anual de Economia Solidária de Santa Maria (RS), desde então conseguiu enormes avanços. De feira municipal passou a ser uma feira solidária sul-americana e, da comercialização esporádica, o projeto deu um salto, implantando um conjunto de lojas solidárias, distribuídas na cidade, além de manter uma feira semanal, na qual é possível encontrar uma diversidade de produtos da agricultura familiar ecológica e de grupos urbanos da economia solidária.

A Rede Xique Xique (RN) representada pela Neneide, mostrando como no longínquo sertão nordestino, especialmente mulheres se organizaram em toda a cadeia produtiva, elaborando sua carta de princípios, com ênfase à questão feminina e construindo espaços de comercialização que estão em várias cidades do estado, através de feiras, pontos de venda, tanto para alimentos quanto para o artesanato. Conseguiram organizar-se a ponto de tornarem-se uma base de certificação participativa. Trabalham muito com a questão educacional, pelos direitos das mulheres, contra os transgênicos e em busca da soberania alimentar.

A Central de Comercialização da Economia Solidária do Mato Grosso do Sul , representada por Tiana, com uma loja, espaço cedido pelo governo do Estado, onde comercializam tanto alimentos quanto artesanato. O grupo administra coletivamente o espaço e suas necessidades, com formação e difusão das propostas da economia solidária.

A APAT, com Derli, brilhou: organização articulada por produtores da região da Mata, de Minas Gerais, que conseguiu o controle sobre toda a cadeia produtiva com uma produção diversificada que envolve as cadeias do leite, cana e café, trabalhando com a homeopatia, caldas, etc. Na ponta da comercialização, organizaram um mercado de seus produtos na cidade de Tombos, que significa um canal de escoamento cotidiano para os produtores, e um espaço de compra para o que lhes falta. Participam do Programa de Aquisição de Alimentos da Conab, abastecendo 5 cidades, além de hospitais, presídios,etc.

A Adao, Grupo de Produtores e Consumidores, que trabalha com cestas fixas, pagamento antecipado dos insumos e necessidades da produção, em Goiás. Também trabalham sobre a certificação, estruturando-se como base de certificação participativa.

Mais uma vez comprova-se o quanto a organização dos consumidores ainda é pouco debatida, apesar de sua importância crucial. Em que pese o consumidor ser o grande financiador de toda a cadeia da economia solidária e da agricultura familiar ecológica, o debate avança com força apenas até a etapa da comercialização. A construção de estratégias relacionadas à mobilização e a articulação de consumidores conscientes ou solidários ainda é muito incipiente.

Éramos apenas três grupos organizados a partir de consumidores. Dentre elas, a GiraSol, Cooperativa de Comércio Justo e Consumo Consciente, uma experiência recente desenvolvida em Porto Alegre (RS). A GiraSol organiza-se a partir de um grupo de sócios voluntários que articula produtores da economia solidária e da agricultura familiar ecológica e sensibiliza consumidores, na perspectiva permanente da constituição e ampliação de uma Rede de Consumidores que se disponham a questionar o seu padrão de consumo, adotando outros hábitos, orientados pela lógica da sustentabilidade. A venda dos produtos é feita quinzenalmente, através de sua página na internet e a entrega na sua Sede, oportunidade em que rola um bom chimarrão e a degustação de novos produtos. Quando o consumidor não dispõe de tempo para buscar a compra, a GiraSol providencia a entrega.

O Movimento de Integração Campo-Cidade (MICC), uma articulação entre grupos de consumidores da cidade de São Paulo e assentados do Estado (Ibiúna e Peró) há mais de 10 anos garante, através de cestas fixas, uma renda previsível para os produtores. Movimento ligado à Igreja, conta quase totalmente com trabalho voluntário para a logística da entrega para a cidade e mantém também uma loja solidária. Fazem um trabalho formativo para compreender a reforma agrária, a economia solidária e a soberania alimentar.

A Rede Ecológica, Campo e Cidade se dando as mãos, no Rio de Janeiro, calcada em compras coletivas semanais (em 4 núcleos) e mensais (3). Nas compras mensais são trazidos produtos variados de diferentes partes do país, possibilitando uma alimentação predominantemente agroecológica. As compras são feitas através de encomendas (especialmente por internet), entregues em espaços comunitários (escolas, igrejas, associação de moradores). A gestão é realizada por consumidores voluntários, contando ainda com um grupo pago para tarefas de infra-estrutura. Busca-se maior conscientização dos consumidores, através da comunicação internáutica, de encontros e da prática constante de um outro tipo de consumo.

Pela aproximação e diálogo com os dois atores – produtores e consumidores – as três iniciativas de consumidores descritas, perseguem a re-significação na sociedade do ato cotidiano de consumir – perceber que atrás de um produto há uma cadeia de valores oculta que pode ser social e ambientalmente positiva ou negativa - e a partir daí orientar a escolha.

Ainda há muito que ser feito, mas, a integração iniciada promete avanços para esta nova proposta. A comercialização e o consumo ainda se dão de forma muito segmentadas, mas esta iniciativa certamente agilizará processos e tornará a nossa caminhada mais leve.

O Encontro já foi um testemunho disso. O reunir-se com os diferentes atores, de várias partes do país foi um dos pontos altos. Passou por dançar/cantar ciranda, trocar experiências, abraços, sentimentos e produtos. E um fruto concreto desta troca, é este texto escrito a quatro mãos, no aeroporto Juscelino Kubitschek em Brasília, aguardando nossos respectivos vôos.

Fazer um relato sobre o vivido, uma atividade em geral pesada, tornou-se prazeroso, provando que o encontro verdadeiro entre pessoas é sempre promissor e pode revelar preciosas formas de viver.

A Rede Ecológica e a GiraSol, já experimentaram o sabor de novas possibilidades. Perspectivas se abrem para nós do ponto de vista da troca de produtos e da construção coletiva de metodologias e de processos que auxiliem no fortalecimento da pauta do consumo.

Muita formação, reflexão e educação ainda são necessárias para a disseminação de novas práticas que contribuam para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.

E também políticas públicas que apóiem iniciativas fomentadoras.

*Iara Borges Aragonez, representante da Cooperativa GiraSol, Porto Alegre/RS e do Coletivo Desenvolvimento Sustentável do SEMAPI Sindicato.
**Miriam Langenbach, representante da Rede Ecológica, Rio de Janeiro/RJ

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Comércio justo, ético e solidário e a agricultura familiar brasileira: um outro mercado é possível?

O texto abaixo trás uma oportuna abordagem sobre o comércio justo, em particular quando trata do assunto vinculando à importância desta “metodologia, estratégia ou conjunto de práticas” à agricultura familiar e a necessidade de construção coletiva de um novo mercado e de uma nova ética. É valorosa a associação que faz ao mercado interno, tomando-o como estratégia de desenvolvimento local sustentável e chamando a atenção para a necessária superação de aspectos puramente comerciais. O texto trabalha o papel do consumidor e a importância de resgatar a relação deste com o produtor, recuperando o espaço perdido pelas “marcas globais”. Traz uma reflexão comparativa entre as cooperativas de consumidores e o Sistema “Fair Trade”, reconhecendo àquelas (as cooperativas) como mais favoráveis para os pequenos produtores. Enfatiza que boa parte das dificuldades para a viabilização da agricultura familiar decorre, sobretudo, da sua incapacidade de pensar corretamente sua articulação com o mercado e para a necessidade de a comercialização de produtos da agricultura familiar ocorrer em um âmbito cujo controle esteja ao alcance dos produtores, fugindo um pouco da corrente e mecânica vinculação do comércio justo às relações externas que, em regra, subestima o debate acerca das dimensões locais e da necessidade de criação de condições para que os agricultores desenvolvam às suas capacidades humanas e a partir daí a criação de diferenciais positivos. A questão da territorialidade e suas dimensões étnicas, culturais, históricas, política e ambiental, como fatores de diferenciação, qualidade e de identidade dos produtos está muito bem pontuada. Destaca a importância do empoderamento dos produtores pelo fortalecimento de suas capacidades produtivas e comercias, desafiando as autoridades, os técnicos, a academia e as organizações de apoio.

Bueno, o texto é longo e trás muito mais elementos para a reflexão daqueles que preocupam-se e ocupam-se com o tema.

Uma boa leitura!!!

Iara Aragonez
Coletivo Desenvolvimento Sutentável SEMAPI e
Cooperativa GiraSol - Comércio Justo e Consumo Consciente


Antes de mais nada, uma utopia.

Felipe Sampaio e Murilo Flores1

Alguns preferem chamar de metodologia, outros de estratégia, e há quem chame de conjunto de práticas, além dos que se referem a esse assunto como um movimento antiglobalização ou uma nova forma de pensar o mercado. Porém, o perigo está naqueles que classificam o comércio justo, ético e solidário como nicho de mercado. Entre eles estão não só os empenhados em evitar as mudanças no estado de coisas, mas também os atentos à oportunidade de tirar proveito de mais essa manifestação contemporânea, como referência para a criação de alguma nova tribo virtual de amplitude global – quem sabe algo como “Solidário Fashion”? Ou seja, há aqueles que buscarão ganhar com a redução dessa concepção política emergente à dimensão de mais um grupo de potenciais consumidores alvo.

Uma visão. Um desejo. Uma referência. É a maneira mais adequada – talvez a mais prudente - de se definir comércio justo, ético e solidário quando se quer pensar esse processo em seu potencial transformador. Um destino, não um caminho. Talvez uma escala, para os que pensam em ir mais longe.

A utopia: um mercado de iguais, construído coletivamente, que promova a globalização das oportunidades e das liberdades. Seria isso possível?

Justiça, ética e solidariedade: de quem e para quem?

Sem querer discutir neste momento os diversos pontos de vistas sobre o que venha a ser a ética, sempre podemos nos arriscar, ainda assim, numa exploração superficial do que seria ético ou não. Por outro lado, se a ética envolve normas e responsabilidades para a sociedade e para o indivíduo, e se esse conjunto de limites e referências varia no tempo e no espaço (neste último, cada vez menos), talvez não estejamos em busca de comportamentos éticos, mas de uma nova ética, como diria Valls (1986). Para não corrermos riscos de patinar numa discussão filosófica redundante e acabarmos sendo abatidos pela imprecisão teórica de ordem geral, é conveniente ajustarmos mais uma vez o foco desse trabalho.

A questão poderia ser formulada, então, supondo-se que o que buscamos é um resgate de possíveis valores éticos originais do mercado, como os ideais de liberdade e igualdade dos clássicos do século XIX, ou até, quem sabe, a construção de uma nova ética para o mercado. A segunda opção de transformação é mais profunda que a primeira. No limite, podemos perguntar mesmo se o mercado, como o conhecemos, comporta a configuração ética que desejamos. Mas, afinal, o que nos interessa é um ambiente de trocas justo, ético e solidário. E se tal ambiente é um destino, primeiramente precisamos construí-lo coletivamente. Devemos estar preparados também para a possibilidade de, durante a sua construção, a própria utopia se redefinir.

Uma pergunta cabe neste ponto: o modelo de mercado globalizado, no qual estão envolvidas as economias capitalistas modernas e suas corporações “classe mundial”, a busca do lucro per se é antiética? Ou será que as práticas produtivistas apenas respeitam a ética do sistema neocolonialista global?

De outra forma, podemos colocar nosso questionamento assim: falar na criação de um comércio justo, ético e solidário decorre da constatação de que alguém, em algum momento, agiu com a intenção deliberada de promover a injustiça e a desigualdade, ferindo a ética vigente, ou a será que a ética desse tempo e espaço admite como justas essas práticas, na busca do lucro e da produtividade?

Talvez tentar construir esse nosso destino, ou nossa primeira escala, seja uma forma de avançarmos e aprendermos mais sobre isso tudo. Sendo assim, podemos formular uma justificativa para se pensar em políticas e estratégias para a construção de um comércio justo. Então, de uma maneira simplificada, poderíamos dizer que, partindo da hipótese de que grande parte da miséria e das desigualdades do mundo é resultado das relações comerciais e trabalhistas injustas, entre pessoas, empresas e nações, podemos supor que será esse mesmo mercado o cenário das transformações que desejamos, e que serão conquistadas a partir da reconstrução coletiva da qualidade ética dessas relações.

O comércio justo, ético e solidário, está baseado em princípios como erradicação do trabalho infantil e do trabalho escravo, eliminação das descriminações de raça, gênero e religião, preservação da saúde das pessoas e do ambiente, eliminação dos níveis de intermediação comercial especulativa, garantia do pagamento de preços justos aos pequenos produtores, respeito aos direitos trabalhistas, respeito às identidades históricas e culturais locais e regionais, valorização das dimensões não geográficas do território, fortalecimento das capacidades de escolha e planejamento das pessoas, estimulo ao surgimento de formas associativas e cooperativadas, apoio ao desenvolvimento e oferta de ferramentas de conhecimento e de tomada de decisão, garantia dos fluxos multidirecionais de informações entre os atores envolvidos, entre outros.

Um contexto nada acidental.

Segundo Fairbanks (1999), notadamente a partir da Segunda Guerra Mundial, o mercado internacional adotou como referência as idéias sobre vantagens comparativas, ou relativas, para a distribuição de papéis entre as nações do pós-guerra, no que diz respeito à produção e ao comércio internacional, com impactos decisivos sobre o desenvolvimento e a equidade social, inclusive no nível local. A agricultura familiar brasileira não está fora do alcance dos efeitos dessa política. Em linhas gerais, enquanto aos países ricos foi atribuída uma vocação indiscutível para a produção industrial e o desenvolvimento de tecnologias avançadas, para a América Latina restou como vantagem evidente, a exploração dos recursos naturais, solo e da mão-de-obra barata, abundantes na região, e adequados para a produção de bens homogêneos, de baixo valor agregado.

Essa opção baseada em preço/custo resulta em estratégias de competição facilmente imitáveis, esgotamento dos recursos naturais, manutenção dos baixos níveis de renda e agravamento do processo de exclusão. Ou melhor, como prefere Forrester (1997), aprofundamento do nível de exploração, já que os agricultores, “ao contrário, estão lá, apertados, encarcerados, incluídos até a medula! (...) Jamais suficientemente expulsos! Incluídos e em descrédito”.

Nesse cenário, a agricultura da América Latina assumiu a tarefa de produtor de matérias primas homogêneas para abastecer o desenvolvimento industrial, e conseqüentemente o desenvolvimento urbano. É necessário então que se criem as condições para que os agricultores familiares desenvolvam suas capacidades humanas, necessárias para a criação de diferenciais e vantagens baseadas em variáveis administráveis, a partir do acúmulo de conhecimento consistente.

Michael Fairbanks lembra que, no mercado, não fazer escolhas explícitas é optar por deixar que outros atores escolham por você. Isso inclui escolher mercados, clientes, valores agregados, estratégias de posicionamento, parceiros, informações, etc. Deixar de escolher, empurra o agricultor familiar para segmentos e mercados em que as margens são mais baixas, onde a concorrência preço/custo é mais acirrada. Competir no mercado de produtos homogêneos, sem agregar valor, acaba afetando o nível de cooperação no segmento e no território, devido à falta de oportunidades para todos, comprometendo a qualidade da convivência e o grau de solidariedade entre os indivíduos. A cooperação local existe quando há uma definição de estratégias que busquem colocar o território como um ambiente capaz de competir, representando o conjunto de experiências e saberes locais, transformados em produtos e serviços.

Fairbanks aponta que se estabeleceu um padrão de atuação em agricultura nos países em desenvolvimento, no qual os governos passaram a adotar políticas para capacitar os produtores para melhor atender aos espaços de mercado que lhes haviam sido destinados mundialmente. Acrescente-se a isso as políticas protecionistas voltadas para amparar o modelo de substituição de importações adotado por alguns países em desenvolvimento. Esse conjunto de práticas veio acompanhado por uma tendência por parte dos governos a se dedicarem ao planejamento estratégico no nível macro econômico e se distanciarem das estratégias de fortalecimento da competitividade no nível micro, que envolve questões como, infra-estrutura específica, capacitação, estudos de mercado, capital social, informação, logística, etc.

Por sua vez, os grandes produtores interessados nos mercados indicados para a produção de commodities, em grande escala, passaram a consumir a maior parte dos recursos e da atenção dos governos, que insistiam em reforçar as possibilidades dos mais competitivos para conquistar o mercado internacional, como estratégia para o crescimento econômico. Aumentou a pressão desses setores sobre os governos por subsídios e proteção para os produtos de exportação.

Aos pequenos produtores, privados dos sistemas de crédito e de assistência técnica, restou manter-se na produção de produtos para o auto-consumo e na venda de excedentes de baixo valor adicionado para intermediários e consumidores locais.

Apoiados por suas organizações, e acusando os governantes de privilegiar as grandes empresas agrícolas, os agricultores familiares dedicaram-se por muitos anos a pressionar os governos por políticas compensatórias que atenuassem o processo de exclusão social dentro do modelo estabelecido.

Ainda hoje os agricultores familiares da América Latina contam com formas associativas de caráter predominantemente reivindicativo. Nas palavras de Matos (1998), “essas organizações tendem a confundir os mecanismos de organização política com aqueles de organização econômica, não conseguindo assim, salvo raras exceções, promover a inserção competitiva e sustentável da pequena produção familiar no mercado”.

Michael Fairbanks alerta ainda para a necessidade de as organizações da sociedade civil dos países em desenvolvimento assumirem uma nova postura como liderança. Os sindicatos e as associações precisam se sensibilizar e se capacitar para a formulação e a negociação de propostas e programas de capacitação, estudos de mercado, fortalecimento do capital social e para a construção compartilhada do desenvolvimento. “A velocidade com que ocorrem a exclusão social e a perda de oportunidades comerciais num mundo globalizado é muito superior à capacidade de resposta do governo”.

O desafio é superar os paradigmas herdados das políticas baseadas em vantagens relativas, que atribuem aos processos de desenvolvimento fatores de sucesso não administráveis - disponibilidade de solos, recursos naturais, mão-de-obra barata, localização geográfica, tradição, etc. – e criar as ferramentas necessárias para que os próprios agricultores familiares, apoiados por suas organizações e pelos governos, possam fazer opções acertadas, baseadas no conhecimento das necessidades e das condições locais, na compreensão das necessidades e nos interesses dos clientes e consumidores, bem como numa visão compartilhada local a respeito do que é bom para as pessoas e para o lugar.

A agricultura familiar e o mercado.

As maiores dificuldades para a viabilização dos empreendimentos familiares rurais, além das limitações de recursos, decorrem, sobretudo da sua desarticulação com o mercado. O conhecimento dos canais e mecanismos de comercialização restringe-se, na maioria das vezes, ao mercado local. Na prática, os pequenos produtores, mesmo quando dispõem de crédito e de assistência técnica, tornam-se dependentes dos intermediários, que chegam a pagar por seus produtos até 10% do que será pago, no varejo, pelo consumidor final (Fundação Lyndolpho Silva, 2001). Neste ponto cabe uma observação sobre a denominação de agricultura familiar. Em realidade, este termo é usado correntemente representando algo muito maior do que um segmento familiar que exerce atividades puramente agrícolas. Sua inserção em diferentes atividades, industriais e de serviços, faz com que o termo empregado não seja o mais adequado. Apesar disto, e devido ao fato de que tem sido utilizado oficialmente, mesmo representando atividades muito mais amplas, manteremos esta denominação neste texto, com referência ao conjunto dos pequenos negócios e atividades rurais que, inclusive, quando de forma agregada ou associativa, pode se transformar em um grande negócio.

Aécio Matos afirma que boa parte das dificuldades para a viabilização da agricultura familiar decorre, sobretudo, da sua incapacidade de pensar corretamente sua articulação com o mercado. O conhecimento dos canais e mecanismos de comercialização restringe-se, na maioria das vezes, a intuições e crenças sobre o mercado local. Na prática, os pequenos produtores acabam tornando-se dependentes de intermediários que nem sempre adicionam algum valor real aos seus produtos ao longo da cadeia e que se apropriam, desnecessariamente, de parcelas consideráveis dos ganhos econômicos.

Entretanto, Collins (1995) defende que, no mercado, não é necessário fazer uma escolha estratégica brilhante logo de início, baseada na capacidade diferenciada de um líder visionário. O fator inicial para se atingir uma posição sustentável no longo prazo está na definição do conjunto de princípios e valores que orientarão as decisões a serem tomadas em todos os níveis. Se ele estiver certo, no caso da agricultura familiar, o primordial não é decidir antecipadamente quais os produtos e mercados a serem trabalhados, ou quais as estratégias definitivas a serem adotadas. Antes de se fincar pé em opções como produtos orgânicos, mercado justo, agroindústrias, consórcios de exportação, marca da agricultura familiar, é importante avaliar se essas decisões estão levando em consideração conhecimento e informação consistentes e se as diferentes visões e necessidades dos envolvidos estão sendo consideradas.

A organização e a capacitação da agricultura familiar como segmento, e dos empreendimentos familiares individualmente, permitirá a proliferação de boas estratégias e de bons produtos. Não o contrário. O principal resultado a ser perseguido no longo prazo não deve ser o lucro per se. O lucro, por sua vez, deve ser encarado como uma das principais ferramentas para que se criem as condições de bem-estar almejadas e planejadas pela comunidade, respeitando-se os princípios e valores presentes no modo de vida dos agricultores familiares. Na verdade existem diversos outros fatores que exercem influência na decisão da agricultura familiar, inclusive pelo fato de que seu local de produção se confunde com seu local de vida em família, gerando um conjunto muito mais amplo de expectativas, com reflexos sobre as decisões.

Já o mercado deve ser apresentado e tratado como um ambiente de exercício da liberdade básica dos indivíduos de realizar as trocas que sejam de seu interesse. Um espaço para a prática do talento humano de inovar para melhorar. Um lugar de reconstrução coletiva da capacidade e do interesse humano de cooperar. Aqui identificamos mais uma possível vantagem dos gricultores familiares no mercado, o seu carinho pelo resultado do seu trabalho e pelas pessoas. A American Society for Quality Control vem realizando, desde 1994, uma pesquisa cujos resultados têm revelado um permanente decréscimo no índice de satisfação e de fidelidade a marcas dos consumidores americanos e europeus. Segundo Shewe (2000), isso se deve à mudança de foco das grandes empresas durante os anos 90. Os programas de qualidade total e de aproximação com o consumidor deram lugar a iniciativas como reengenharia,
globalização, fusões, terceirização e outras voltadas puramente para os ganhos de produtividade.
Como um estabelecimento da agricultura familiar não está estruturado em departamentos, especialização e burocracia, pode haver uma facilidade natural para o fortalecimento do comprometimento e da confiança entre esses produtores, seus clientes e consumidores. Eis aqui uma vantagem dos agricultores familiares.

Mas, as observações de Shewe servem para nos lembrar também que, apesar de o comprometimento demonstrar uma intenção dos agricultores familiares em atender aos interesses reais dos clientes, isso ainda não é o suficiente para que consigam fazê -lo. A
capacidade de perceber e atender às necessidades reais dos clientes se constrói a partir de conhecimento e informações. Aí está um desafio importante para as organizações, autoridades e academias que se propõem a apoiar os agricultores familiares. A falta de acesso ao conhecimento e a prática de decidir com base no conhecimento insuficiente, e não raro, inconsistentes, estão presentes não só entre os produtores familiares, mas também entre suas organizações sindicais e cooperativas, bem como entre as ONG’s e as autoridades governamentais que os apóiam.

Além disso, visões preconceituosas e enraizadas - algumas produzidas como efeito colateral do próprio processo histórico e outras resultantes de posturas mal intencionadas - provocam conflitos entre os diversos atores envolvidos: governo, empresas, agricultores familiares, sindicatos, ONG’s. Isso impede a formulação de estratégias conjuntas para o desenvolvimento geral da competitividade dos setores e dos territórios, comprometendo o processo de desenvolvimento de uma maneira geral.

Para a agricultura familiar do Brasil, o relacionamento com agentes do comércio internacional, por exemplo, poderia proporcionar trocas interessantes não só de produtos e divisas, mas também de experiências e conhecimento. Todavia, é importante atentar para alguns desvios de percurso que comprometeriam o processo de desenvolvimento sustentável e a ampliação das liberdades dos próprios agricultores familiares.

O primeiro risco está em expor os agricultores familiares aos ambientes “competitivos” e às práticas comerciais dos importadores tradicionais dos mercados de classe global. Essas práticas têm como objetivo o lucro per se. Uma exposição da agricultura familiar a essa modalidade de competição pode levar a um aprofundamento das desigualdades e da exclusão e à perda de valores e princípios territoriais ou específicos da agricultura familiar. É importante identificar canais de distribuição e de comunicação comprometidos com os valores e as necessidades da agricultura familiar.

O segundo aspecto a observar é que comercializar, crescer, competir não deve ser confundido com adotar padrões de consumo e concepções de sucesso próprios das sociedades capitalistas ditas modernas. Nas palavras críticas de Frei Beto (2000) “o mercado é o novo fetiche religioso da sociedade. O fator identidade social não é mais o trabalho, é estar no mercado”.

Outro ponto que merece reflexão é levantado por Porter (1990): “o sucesso em exportações começa em casa”. Estendendo a consideração de Porter também para o mercado interno, podemos pensar que, para enfrentar os desafios do mercado, a agricultura familiar precisa ser capaz de olhar para, não só para as sua capacidades e necessidades, mas também para os impactos das ações estratégicas sobre o seu ambiente local. As autoridades, os agricultores e as organizações que os apóiam precisam definir local e conjuntamente qual é a contribuição das estratégias comerciais para o desenvolvimento local. Precisam também identificar quais os fatores locais que podem contribuir para o sucesso ou para o fracasso dessas iniciativas. Um outro cuidado a ser tomado é com o conteúdo e a natureza das trocas a serem realizadas. Segundo Buarque (2000), ao invés de simplesmente buscar no exterior modelos e respostas para os problemas locais, temos condições de apresentar ao mundo as soluções que fomos capazes de encontrar para os nossos problemas.

Por sua vez, Charles D. Shewe alerta para que grande parte dos fracassos nas iniciativas de comercialização decorre da falta de informações consistentes e insuficiência de compreensão a respeito dos mercados de destino. Shewe sugere que os pequenos empreendimentos que não dispõem de recursos para pesquisas e estudos de mercado, como é o caso da agricultura familiar brasileira, iniciem o seu trabalho de prospecção estabelecendo um universo de destino cujo domínio esteja a seu alcance. Uma pesquisa realizada por Fairbanks junto a autoridades e lideranças setoriais de países andinos, revelou que os setores quem desfrutam de ferramentas de acesso ao conhecimento e à informação passam a depender cada vez menos de vantagens governamentais compensatórias e assistencialistas. Esses setores são os mais
interessados nas relações comerciais abertas, em especial com o exterior, onde se paga
melhor por produtos de alto valor agregado e de onde se obtém o melhor feedback sobre
tendências e tecnologias. Esses produtores apresentam o melhor posicionamento vertical
em suas cadeias, ou fazendo as melhores alianças com os agentes que se encontram
acima da sua posição.

Contudo, os estudos de Fairbanks demonstram que, nos países em desenvolvimento, por desconhecimento, equívoco estratégico, preconceito ou simples oportunismo, as autoridades, lideranças sindicais, empresas, universidades e outras organizações têm, ao longo dos anos, acabado por privar, com suas práticas e posturas, os pequenos agricultores das capacidades necessárias para que eles possam exercitar sua liberdade de fazer opções bem informadas a respeito das estratégias comerciais que atendam a seus interesses reais.

Por isso, sugere Michael Fairbanks, as organizações dos agricultores familiares e a sociedade civil devem partir na frente das autoridades, dos organismos internacionais e dos grandes empresários e apresentar propostas concretas, baseadas em conhecimento consistente e informação atualizada, voltadas não só para os resultados operacionais de curto prazo, mas, principalmente, para a construção de um novo direcionamento estratégico para o setor e para os territórios, sob uma visão de desenvolvimento local sustentável. A partir das observações de Fairbanks sobre os países andinos, pode-se concluir que, também no Brasil, a falta de conhecimento e de informação sobre a agricultura familiar e sobre o contexto no qual ela tem estado inserida, reduziu ao longo tempo a participação das suas organizações a uma atuação de caráter predominantemente reivindicativo. Dedica-se pouco tempo ao estudo e à compreensão da situação atual e do processo histórico, para que se possa tomar decisões estratégicas a
respeito do futuro.

Em decorrência disso, as escolhas passam a ser inconsistentes e levar a posições relativas no mercado que são insustentáveis no longo prazo, pois se baseiam em hipóteses que podem estar incorretas. Com o tempo isso leva à corrosão das vantagens que se supôs para o segmento. Nesse processo a agricultura familiar é ultrapassada e deslocada por setores nacionais melhor organizados e preparados. É também superada por concorrentes mais ágeis e capazes no mercado internacional. Nos dois casos a agricultura familiar deixa de cumprir não só o seu papel para o desenvolvimento rural sustentável, como também desperdiça oportunidades de gerar riqueza e felicidade para os agricultores familiares. Assim os agricultores familiares ficam submetidos ao que Passet (2002) se refere como a natureza das coisas, quando denuncia o “bom senso” darwinista do mercado.

Por outro ponto de vista, usando a abordagem de Shewe, podemos dizer que a elevação da qualidade dos produtos e processos da agricultura familiar resultaria em aumentos na participação dos agricultores familiares nos mercado-alvo escolhidos, provocando uma redução nos seus custos e um aumento da lucratividade do empreendimento. Assim o tempo de retorno diminui, antecipando e elevando a capacidade de reinvestir dos agricultores familiares e, finalmente, aumentando sua competitividade. Segundo James C. Collins, uma boa maneira de iniciar processos de mudança na direção de mercados desconhecidos é realizando pequenos movimentos, testando coisas pequenas e vendo quais se tornam coisas grandes: “quanto mais
compreendemos em profundidade o que acontece em um dado universo de observação,
mais percebemos essas questões refletidas em outros ambientes”.

Comércio justo, ético e solidário: histórico e princípios

Os primeiros registros de ações sistemáticas de comércio justo, ético e solidário são do final do século XIX. Eram iniciativas de religiosos com caráter predominantemente filantrópico, aproximando produtores pobres do sul do mundo e consumidores da Europa. A partir dos anos 60 consolidou-se a idéia de que o empoderamento daqueles produtores só se daria pelo fortalecimento de suas capacidades produtivas e comercias. Criaram-se e multiplicaram-se pelos países ricos as organizações, instituições e empresas de fair trade. Atualmente há toda uma regulamentação do Parlamento Europeu para garantir ao consumidor solidário a qualidade e a origem dos produtos do comércio justo. Há também toda uma rede de produtores, importadores, certificadores, indústrias, ongs, cooperativas, universidades, editoras, consultorias e outras instituições especializadas em comércio justo, ético e solidário.

Na definição da Network of European World Shops – a rede européia de lojas especializadas em produtos do Fair Trade, o Comércio Justo, é "uma parceria entre produtores e consumidores que trabalham para ultrapassar as dificuldades enfrentadas pelos primeiros, para aumentar o seu acesso ao mercado e para promover o processo de desenvolvimento sustentado”. Existe uma rede de 2.700 lojas “World Shops” e 12 agentes de importação e distribuição dos produtos com selo CJ em 9 países da Europa, que responde por uma fatia de US$ 900 milhões/ano, e canaliza produtos de 800 organizações nos países em desenvolvimento.

O levantamento feito pela Secretaria de Reforma Agrária do Ministério do Desenvolvimento Agrário (2002), junto à organização européia Max Havelaar revela ainda que os maiores importadores europeus do Comércio Justo são Inglaterra (22,48%), Alemanha (22,48%), Suíça (19,56%), Holanda (17,54%), Itália (4,5%), Dinamarca (4,5%) e a França (2,7%) – dados de 2000.

Nos últimos anos, países como México e Brasil iniciaram a discussão e a criação de sistemas de comércio justo, ético e solidário para atender a seus mercados internos. Nesse ponto, começa a se intensificar também a discussão interna sobre o que é justo e ético de fato nesse processo, e a quem interessa a concepção de justo e ético dos europeus.

O Gerente de Orgânicos da KF Category Organisation (Nuremberg), rede de supermercados da cooperativa de consumidores da Suécia, Sr. Torbjörn Löfdahl, afirmou em entrevista à Fundação Lyndolpho Silva (Programa Brasil Equo), durante a feira de Nuremberg – 2001, que as condições de comercialização para pequenos produtores são mais favoráveis com as cooperativas de consumidores do que com o sistema Fair Trade propriamente dito. O Sr. Löfdahl chegou a insinuar que o fair trade, como está organizado na Europa é, na verdade, um grande negócio controlado por certificadoras e importadoras, enquanto as cooperativas de consumidores proporcionam menores preços aos consumidores, sem penalizar a margem dos produtores.

O Brasil e o comércio justo, ético e solidário

No Brasil, diversas organizações da sociedade civil iniciaram em 2001 uma discussão para a criação conjunta de um sistema de comércio justo para o mercado interno do Brasil. Essa iniciativa, de maneira geral, decorre da percepção de que o comércio justo internacional é necessário, mas não suficiente para resolver os problemas de mercado enfrentados pelos agricultores familiares brasileiros. Ou seja, países com elevados níveis de pobreza e desigualdade social que, por outro lado, possuam grande mercado consumidor e grande diversidade produtiva, devem trabalhar as visões compartilhadas dos diversos atores de suas sociedades para a construção coletiva de um novo mercado, em bases justas, éticas e solidárias.

A partir da experiência acumulada ao longo de três anos de formulação e implantação do Programa Brasil Equo, na Fundação Lyndolpho Silva, apoiado pela Agência de Promoção de Exportações - APEX e CONTAG, arriscamos afirmar que, para a construção de um “comércio justo do Brasil”, é necessário encarar o desafio nas suas diversas frentes de discussão. Essas frentes superam o aspecto puramente comercial, se considerarmos que comércio justo associado a mercado interno deve ser encarado com estratégia de desenvolvimento sustentável.

A primeira frente diz respeito à participação dos consumidores no processo.

Nesse caso o consumidor não deve ser tratado como alvo de políticas promocionais ou de
marketing, pois o comércio justo não é um nicho de mercado. Também não se pode buscar a participação de um consumidor caridoso, pois não se trata de resolver dificuldades pontuais e incidentais de famílias desafortunadas. O consumidor deve se envolver, aderir, ser conscientizado. Deve-se formar um consumidor cidadão e esclarecido. Deve-se estudar qual a percepção que esse cidadão, enquanto consumidor, tem dos pequenos produtores, de seus produtos e de suas origens. Esse cidadão, como consumidor, tem ainda necessidades e interesses específicos que devem ser respeitados nas relações comerciais.

Segundo pesquisa da European Fair Trade Association (EFTA), os consumidores europeus demonstram maior responsabilidade na hora da compra e estão prontos a pagar um preço maior por produtos que apresentam qualidades sócio-ambientais. Na Inglaterra, por exemplo, 68% dos consumidores entrevistados declaram estarem dispostos a pagar um preço maior. 86% dos ingleses conhecem os produtos do Comércio Justo, 84% na Suécia, 66% na Holanda e 62% na Bélgica.

Esta relação, entretanto, não se estabelece tão naturalmente na sociedade, ao contrário do que estamos tentados a imaginar. Uma pesquisa feita pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (IPESPE/MDA, 2000), nos principais centros consumidores das cinco regiões do Brasil, demonstrou que, na maioria das capitais analisadas, os entrevistados revelaram não perceber a agricultura familiar como um fornecedor confiável de produtos no que diz respeito a higiene, acabamento, entrega, padronização e outros atributos de qualidade valorizados pelos consumidores. Por outro lado, a pesquisa revelou que os mesmos consumidores associam o mundo rural a imagens positivas como qualidade de vida, lazer, saúde, esportes, natureza, etc. Ainda os mesmo entrevistados afirmaram que percebem nos agricultores familiares valores e princípios como solidariedade, honestidade, preocupação com o resultado do seu trabalho, hospitalidade, confiabilidade pessoal e outros atributos positivos.

A segunda frente refere-se às capacidades e liberdades dos produtores. Deve-se considerar aqui a importância fundamental da agricultura familiar como vetor do processo de desenvolvimento sustentável. A agricultura familiar brasileira é responsável por 70% dos postos de trabalho rurais e por 40% do valor bruto da produção agrícola. São cerca de 4,5 milhões de estabelecimentos produtivos que reúnem mais de 20 milhões de pessoas (Incra/Fao – 2000). É necessário pensar e oferecer ferramentas que fortaleçam os agricultores familiares, em sua capacidade e seu interesse de participar, analisar, escolher, planejar, e interagir socialmente. Esses agricultores não se encontram simplesmente excluídos do mercado, mas deslocados dos ambientes de decisão e das melhores oportunidades do mercado. É fundamental que os produtores possam desenvolver vantagens e diferenciais sustentáveis no longo prazo, baseando-se para isso em recursos e fatores administráveis, como conhecimento consistente e informação atualizada, ao invés de apostarem sua sobrevivência apenas na exploração de recursos naturais esgotáveis e mão de obra barata, para a formulação de estratégias facilmente imitáveis e fornecimento de produtos básicos e homogêneos.

É necessário que os produtores sejam capazes de desenvolver e explorar novas ferramentas e estratégias que permitam ao consumidor perceber diferenciais de qualidade e identidades territoriais e políticas, ao adquirir produtos originários da produção familiar. A agricultura familiar precisaria, ainda, estar associada a imagens positivas como a da produção artesanal, produção com valor cultural agregado, produtos “saudáveis”, produção que preserve o meio ambiente, produção que esteja aumentando o bem-estar geral no interior, dentre outras que se possa agregar, e que remetam a sociedade a novos sentimentos e impressões com relação ao pequeno produtor para a construção coletiva de um projeto de desenvolvimento sustentável.

O terceiro aspecto da discussão tem a ver com a valorização do território em suas dimensões cultural, social, histórica, política e ambiental. Como afirma Álvaro Valls, ao mesmo tempo em que a globalização avança, juntamente com o fenômeno da massificação e com a ditadura dos meios de comunicação, estabelece-se uma certa amoralidade global, em que a ética é substituída por valores consumistas e por um espírito de competitividade infundado. Se a ética tem lugar e tempo próprios, nada melhor do que a valorização do “territorial” para resgatar valores e princípios fundamentais para o desenvolvimento sustentável e para a integração com o global. Alguém já afirmou anteriormente que uma boa estratégia de marketing tem o efeito de algumas bombas atômicas. E tem sido esse o impacto das estratégias de marketing e das políticas públicas neoliberais (se é que se pode chamá-las de públicas) sobre as identidades territoriais e o tecido social local.

Naisbitt (1994) aponta um sub-processo da globalização que pode ser entendido como uma oportunidade de acesso aos mercados regionais, nacionais e internacionais para a agricultura familiar do Brasil. Ele destaca que, ao mesmo tempo em que a globalização enfraqueceu o Estado-Nação e fortaleceu as grandes companhias privadas, renasceram os valores étnicos, territoriais e, em alguns casos, tribais. O território puramente geográfico como conceito definidor se tornará, portanto, cada vez menos significativo, na previsão de Naisbitt. As dimensões étnicas, culturais, históricas do território assumem no mercado globalizado o papel de elemento diferenciador de produtos e serviços, além de representarem importante ferramenta de fortalecimento do processo de desenvolvimento sustentável, alimentando estratégias e políticas de desenvolvimento territorial. É o homem local, territorial, resistindo a se transformar no mutante cultural que Featherstone (1995) denomina de Homem do Marlboro.

Neste campo, os esforços para a construção de um sentido de territorialidade, com o fortalecimento dos sistemas locais de produção, que refletem processos históricos e culturas locais e que terminam por se traduzir em produtos diferenciados, somam-se aos esforços de construção de um mercado justo, ético e solidário. Neste processo, a preservação de valores culturais e do meio ambiente, e o estabelecimento de uma relação direta entre produtor e consumidor, regatando um diálogo perdido para as marcas globais, e a diferenciação dos produtos por todos estes fatores, estimula também um novo comportamento do consumidor em relação ao produtor e seus produtos. Qualquer intervenção nestes sistemas de produção deve ocorrer com ampla participação das comunidades, de forma a que não sejam perdidos os elos fundamentais entre produto – sistema de produção – comunidade. Nesse sentido, o produto é um dos resultados das interações de diversos fatores ambientais e comunitários, de uma determinada localidade, ou território. A qualidade, por sua vez, não deve estar percebida apenas no produto, como fator de competitividade, mas como um processo que atinge o bem-estar geral, de produtores e consumidores. Um novo entendimento sobre o que vem a ser qualidade, em suas diferentes dimensões, é fundamental para uma compreensão sobre um novo
mercado.

Musson (2002), citando Costabeber (1998) aborda um componente essencial e parceiro da transição técnica, que é a ação social coletiva. Apresenta esta como “um processo de adesão de atores sociais a projetos coletivos baseados em seus interesses, expectativas, crenças e valores compartilhados”. Por isso, considera que a ação coletiva “deixa de ser conseqüência (como era entendido no modelo convencional de desenvolvimento), para ser motor do processo”. Ressalta ainda a interação positiva entre a transição agro-ecológica e a ação social coletiva, no sentido de construir um caminho tecnológico para superar a crise sócio-ambiental, destacando a gradualidade da mudança, ou seja, que ela deverá ocorrer através do tempo.

Isto nos remete também a um sistema que já está imposto no mercado internacional, e que pode está sendo reproduzido e fortalecido no mercado nacional: o sistema de certificação de produtos orgânicos. Será possível a participação dos produtos orgânicos e ecológicos provenientes da agricultura familiar em mercados locais, regionais, nacionais ou internacionais, sem a certificação? Haverá reconhecimento da sociedade pelas características dos produtos, sem o sistema de certificação? Poderá haver sistemas de certificação que estejam a serviço da garantia de qualidade como elemento estratégico do aumento do bem-estar geral da sociedade? A certificação melhora ou piora a condição de vida dos produtores e consumidores? Estas questões ainda não estão claramente respondidas. As possibilidades de sucesso do uso destes sistemas ainda são incertas (Byé e Schmidt, 2001) e a necessidade de discussão sobre a questão da qualidade como um processo de melhoria do bem-estar da sociedade e não apenas como um instrumento de acesso ao mercado se faz necessária (Schmidt, 2001).

Trocando em miúdos

Acessar mercados é o exercício de uma liberdade elementar do indivíduo – realizar as trocas que julgar necessárias para a melhoria do seu bem-estar, conforme Sen (2000). Esse é um direito legítimo desde que alguém, há um punhado de milênios atrás, resolveu que seria bom trocar alguns bens, favores ou atenções, quem sabe? Pode ter sido assim o início do que se chama hoje de mercado globalizado. Aqui reside o desafio da agricultura familiar, de suas organizações, das empresas e do governo na construção do desenvolvimento sustentável, e de uma globalização sem exclusão, se é que isso será realmente possível.

Faz-se urgente, portanto, a construção coletiva das condições para o estabelecimento de novas (ou velhas) bases para a realização de trocas comerciais que aproximem quem produz e quem consome. Uma estratégia baseada na agricultura familiar brasileira que viabilize a ampliação das suas capacidades humanas, possibilitando a criação de novas vantagens competitivas para esse setor, baseadas em fatores administráveis: conhecimento consistente e informação atualizada, a partir de uma visão compartilhada entre os diferentes atores das cadeias produtivas e da sociedade como um todo. Isso exige a formulação e implementação de políticas públicas no nível micro econômico e atenção às novas sinalizações territoriais.

O paradigma da revolução industrial era produzir para satisfazer necessidades reais. Hoje o fator de sucesso reside em criar o que Prahalad (1995) propõe como sendo “novos mercados, para antecipar necessidades que os próprios consumidores são incapazes de perceber”. Aqui se encontra o risco da associação de projetos de desenvolvimento a estratégias de comercialização. É preciso reconhecer o mercado como legítimo espaço de trocas, mas é necessário também colocá-lo a serviço do desenvolvimento do bem-estar geral.

A inserção da agricultura familiar nos mercados nacionais e internacionais deve aproveitar, como poderosa vantagem competitiva, o conjunto de princípios e valores que sustentam a produção de base familiar, associado às percepções positivas que se tem do Brasil no exterior e aos atributos de qualidade que podem ser adicionados pelas características territoriais. Tudo sob uma perspectiva de desenvolvimento sustentável. Deve-se buscar a produtividade e o retorno financeiro como elementos de consolidação de vantagens sustentáveis no longo prazo e não a obtenção do lucro per se.

A construção de um comércio justo, ético e solidário para o Brasil não deve ser um movimento extremista anti-globalização, pois deve reconhecer os benefícios das trocas comerciais, buscando a eliminação das desigualdades e injustiças na distribuição desses resultados. Construir um novo mercado seria possível? Mas isso não seria apenas optar por um mercado menos mal? Pode ser, para aqueles que procuram antever cenários e soluções.

Um comércio justo, ético e solidário exige uma construção coletiva, uma regulamentação transparente e que inclua os excluídos (não apenas os incluídos), políticas públicas adequadas e responsáveis, certificações independentes e uma formulação e planejamento que incluam relações comerciais, preservação ambiental, produção de orgânicos, desenvolvimento territorial e capital social.

Uma visão romântica ou idealista? Certamente! Porque assim devem ser as utopias.

1 Murilo Flores – pesquisador da EMBRAPA e membro da Junta Diretiva da Fundação Lyndolpho Silva.

Bibliografia.

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VALLS, A.L.M., O que é Ética, Brasiliense, 1986.




quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Mudança de poder na agricultura

Por Carlos Walter Porto-Gonçalves

O debate a respeito dos transgênicos e da mudança climática global demonstra que a ciência está cada vez mais politizada, o que torna ainda mais necessária a exigência da precisão conceitual. Assim, devemos deixar de lado o conceito de OGM (organismo geneticamente modificado), que é tudo o que há na evolução das espécies, dentro de um processo que se dá na natureza sempre por modificação genética não intencional. Cultivares são criações humanas co-evoluindo com processos naturais por tempos longos.

O que está em debate hoje não são os OGMs, mas os OLMs (organismos em laboratório modificados), em que o processo de criação não se dá de modo livre na relação da sociedade com a natureza, mas a partir de laboratórios cada vez mais ligados ao mundo financeiro e industrial. Não estamos mais diante da agricultura tradicional, mas de negócios que operam no campo como agronegócio -forma como o complexo técnico-científico-empresarial quer se autodenominar.

A partir de 1945, com o uso da bomba atômica, quando a relação entre o conhecimento científico e o poder, por meio da guerra, ficou por demais explícita, a ciência tem se tornado um assunto sério demais para ficar nas mãos dos cientistas. Mais recentemente, essa relação vem se tornando mais banal ao chegar mais perto do nosso cotidiano.

A relação entre ciência e poder precisa ser levada em conta por exigência da própria ética, na medida em que tem implicações na natureza da produção do conhecimento, sobretudo, mas não exclusivamente, ante as condições materiais e de financiamento. As parcerias entre o Estado e as empresas, cada vez mais comuns, têm colocado novas e complexas questões, como o caráter público do conhecimento, que se traduz na exigência de publicação, e o caráter privado da instituição empresarial, que exige a proteção sigilosa do conhecimento e seu patenteamento.

A produção de conhecimento num setor fundamental para a existência humana muda de lugar com os OLMs, já que diz respeito à reprodução energético-alimentar da nossa espécie, a agricultura e a criação de animais. Estamos assistindo, com o deslocamento da produção de cultivares para os OLMs, à mudança do "locus" de poder, que passa dos campos e dos camponeses e dos mais variados povos originários para os grandes laboratórios do complexo técnico-científico-empresarial. Enfim, mais que uma revolução tecnológica, estamos ante uma mudança nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia.

Com a recente onda pela expansão da monocultura visando a produção de combustível (etanol e diesel de origem vegetal), surge um novo complexo de poder técnico-científico-industrial-financeiro. Isso vem se configurando com a associação de empresas automobilísticas ao ramo da biotecnologia, industrializando a agricultura e submetendo cada vez mais o destino não só das plantações e dos povos originários e camponeses mas também de toda a humanidade aos desígnios de meia dúzia de empresas.

A DuPont se associou à Pionner Hi-Bred (sementes) e à British Petroleum. A Toyota se une à British Petroleum no Canadá para produzir etanol. A Volkswagen acaba de fazer uma parceria com a ADM (alimentos). A Royal Dutch Shell se lança na produção de óleo carburante, e a Cargill, na produção de óleo diesel.

O melhor exemplo disso é a aliança dos "agronegociantes" brasileiros com o setor dos combustíveis fósseis dos EUA, consagrada com a criação da Associação Interamericana de Etanol, que tem como seus principais dirigentes o ex-governador da Flórida, Jeb Bush, e o ex-ministro da Agricultura do governo Lula, Roberto Rodrigues.

As conseqüências do que está em curso são bastante graves, haja vista que, desde o século 19, os combustíveis fósseis foram colocados à disposição da produção de alimentos (máquinas a vapor nos tratores e nas colheitadeiras, por exemplo).

Atualmente, é a agricultura que se coloca a serviço da máquina a vapor para dar sobrevida a um modo de vida sabidamente insustentável do ponto de vista ecológico e que tende a agravar a injustiça social. A diversidade cultural está ameaçada, e tudo indica que o destino da humanidade e do planeta dependerá da solução dessa luta, que, cada vez mais, vem exigindo a atenção de todos.

CARLOS WALTER PORTO-GONÇALVES , 58, é doutor em geografia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e coordenador do programa da pós-graduação da UFF (Universidade Federal Fluminense). É autor de "Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização".

sábado, 24 de novembro de 2007

Já calculou a sua Pegada Ecológica?

Alguma vez pensou na quantidade de Natureza necessária para manter o seu estilo de vida? Já imaginou avaliar o impacto no Planeta das suas opções no dia-a-dia, daquilo que consome e dos resíduos que gera? Com este questionário ficará a conhecer esse impacto.
Entre no site
http://www.earthday.net/footprint/info.asp e calcule a sua Pegada Ecológica fazendo uma estimativa da quantidade de recursos necessária para produzir os bens e serviços que consome e absorver os resíduos que produz.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Pegada Ecológica

Homem já consome 25% a mais do que a Terra tem para oferecer
16 de Novembro de 2006 Fonte: Instituto Akatu

O homem está consumindo, anualmente, 25% mais recursos naturais do
que a Terra é capaz de repor, de acordo com o Relatório Planeta Vivo 2006, lançado recentemente pela Rede WWF. Se a situação insustentável do planeta continuar como está atualmente, levando-se em conta o crescimento populacional, a evolução tecnológica e o desenvolvimento econômico, serão necessários, já em 2050, dois planetas Terra para suprir a demanda da humanidade, de acordo com a projeção do documento. Essa situação pode comprometer a sustentabilidade da vida no planeta como conhecemos hoje, inclusive da vida humana. Os dados, obtidos com base no cálculo da “pegada ecológica”, indicam que o Brasil está na média de consumo anual do mundo - o que não significa que seja bom. A pegada ecológica é uma ferramenta que estima a quantidade de recursos naturais necessária para produzir os bens e serviços que um indivíduo ou comunidade consomem e o espaço necessário para absorver os resíduos que produzem. Segundo a WWF, o equilíbrio seria mantido caso a média mundial de pegada ecológica fosse de 1,8 hectares por pessoa ao ano. O Brasil já consome 2,2 hectares, ou seja, cerca de 22% a mais do que a capacidade da Terra de se renovar. Já nos EUA, por exemplo, a pegada ecológica é de 9,6 hectares por pessoa ao ano. O país é o segundo colocado na lista dos maiores “consumidores” de recursos naturais, atrás dos Emirados Árabes Unidos, com 11,9 hectares anuais per capita. Nesta lista, estão também Finlândia, Canadá, Estônia, Suécia, Kuait (país com menos de um milhão de habitantes), Nova Zelândia e Noruega. Esses países estão nas posições do topo principalmente pela queima em excesso de combustíveis fósseis, que libera gás carbônico (CO2) na atmosfera, o principal causador do aquecimento global. Todo consumo causa impacto que pode ser positivo ou negativo. Esse impacto afeta a natureza, as relações sociais, a economia e o próprio indivíduo. O consumidor consciente pode minimizar os danos causados à Terra ao ter consciência dos impactos que seus hábitos de consumo têm sobre o planeta e ao buscar maximizar os impactos positivos e minimizar os negativos, dando, por exemplo, preferências a produtos certificados, cuja produção minimiza os impactos ambientais. CO2 na pegada ecológica No cálculo da pegada ecológica é computado também a área necessária para absorção do gás carbônico (CO2) emitido pelas atividades do homem como, por exemplo, a partir da queima de combustíveis fósseis. Algumas ações simples podem ser realizadas no dia-a-dia para reduzir a emissão de gás carbônico, cooperando para minimizar o aquecimento global e também para reduzir a pegada ecológica. Entre essas ações, o consumidor pode, por exemplo, usar menos o carro, optando por transporte público, como trem, ônibus ou metrô, andar de bicicleta ou a pé e ainda praticar a carona solidária entre pessoas que fazem itinerários semelhantes. Se, uma vez por semana, um indivíduo deixar o carro em casa para ir ao trabalho, considerando um trajeto de 20 quilômetros, ao longo de um ano inteiro, deixará de lançar para a atmosfera 440 quilos de gás carbônico, como resultado da queima do combustível. Pode parecer pouco, mas essa mesma quantidade de gás carbônico que um homem levou apenas 52 dias para emitir demora 20 anos para ser absorvida pelo processo de fotossíntese por uma árvore de grande porte. A região latino-americana é apontada pelo relatório como a que, aparentemente, está mais próxima da sustentabilidade. Com uma média de pegada ecológica de 2 hectares per capita ao ano, acima da capacidade média da Terra (1,8 hectare per capita ao ano), a América Latina alcança esse status por não superar a biocapacidade de sua própria região, de 5,4 hectares disponíveis por habitante ao ano. O bloco latino-americano fica, assim, em melhores condições que a África, que tem baixo consumo energético e sua pegada é de 1,1 hectare por pessoa, mas é muito subdesenvolvido.

sábado, 17 de novembro de 2007

A SUSTENTABILIDADE PELO ECOSSOCIALISMO

Abaixo segue declaração de princípios e objetivos do Manifesto Ecossocialista, discutido no III FSM. A oficina contou com a participação de mais de 250 pessoas, de 16 estados, incluindo muitas lideranças e militantes da esquerda e do movimento ambiental.

Declaração de Princípios e objetivos da Rede Brasil de Ecossocialistas

Não existe futuro para qualquer pensamento político que não seja ecologicamente sustentável. A crise ecológica é um fenômeno Global, que deve ser tratado local e mundialmente com a mesma intensidade.

Em sua ofensiva, para transformar tudo em propriedade e mercadoria, o capital patenteia a vida, apropria-se da biodiversidade, quer impor os produtos transgênicos, privatizar, mercantilizar e controlar as reservas florestais e a água.

Entender que a lógica da produção e consumo capitalistas funciona como se ela mesma fosse o seu próprio objetivo não basta, temos que transpor a barreira do entendimento ortodoxo, objetivado puramente nos termos das antigas vitórias da classe operária e seu partido, e reconhecer que a pauta ecológica impõe uma nova identificação de atores da cena social e na composição do bloco de forças em torno da aliança operário-camponesa.

A rede de ecossocialistas é formada por mulheres e homens que acreditam que o ambiente não pertence a indivíduos, grupos ou empresas, nem mesmo a uma só espécie.

Que lutam para que cada ser humano existente no planeta tenha os mesmos direitos a dispor dos elementos ambientais e sociais que necessita e que, quando estes forem limitados, ou mesmo insuficientes, a divisão deve ser justa e planejada. Nunca definida por guerras, competição ou outras formas de disputa.

Que compreendem que a humanidade deve limitar e adequar as suas atividades produtivas, respeitando os outros seres e processos de manutenção da vida no Planeta.

Homens e mulheres que acreditam que o eco-socialismo é a realização do socialismo, livre dos equívocos burocratizantes e centralizadores do chamado socialismo real, e atualizado ao contexto da crise ecológica.

Lutamos por uma sociedade sem a exploração de pessoas sobre pessoas, onde o trabalho vise a libertação e não alienação humana. Uma sociedade movida por energia de fontes renováveis, onde a produção reaproveite totalmente os materiais utilizados, sem gerar resíduos.

Lutamos por um Planeta onde o eterno ciclo natural de extinção e renovação de espécies, mantenha-se determinado por ritmos naturais e não mais dentro do ritmo avassalador dos dias de hoje, em que muitas espécies sucumbem com enorme rapidez, por causa das ações da humanidade, que fica cada vez mais sozinha na superfície da terra.

Um planeta habitado por espécies originadas nos processos naturais de criação e mutação naturais, onde se insere a humanidade.

Uma sociedade onde todos tem direito básico ao seu território, a um espaço para viver as superfície da terra e o espaço ambiental não é objeto de especulação imobiliária ou instrumento de Dominação e exclusão.

Onde a terra fica para quem nela trabalha e vive, no campo e na cidade. E falamos de cidades sustentáveis.Onde as pessoas tem consciência de que toda a produção utiliza elementos ambientais, conhecimentos e estruturas sociais.

E que, portanto, parte de produção é de propriedade social e toda pessoa tem direito de acesso aos resultados da produção social, que lhe permita viver em condições dignas.Uma sociedade que não aceite riscos sócio-ambientais.

Que entenda que a inexistência de provas para demonstrar que uma tecnologia é perigosa não basta para a sua aceitação, pois quando surge uma inovação, normalmente ainda não se tem conhecimento dos riscos.

Ao contrário, é preciso que a tecnologia prove ser segura e constituir-se em instrumento de melhoria sócio-ambiental da sociedade, em relação ao existente.

Lutamos por um tempo onde a diversidade social é fruto da livre determinação de pessoas e povos. As diferenças culturais, étnicas, de raça, de gênero e de opção sexual não podem jamais ser instrumento de negação de igualdade de direitos sociais.

Enfim, a rede de ecossocialistas é formada por pessoas que dedicam suas vidas para defender a vida, contra a barbárie e pela paz no planeta.

Porto Alegre, III Fórum Social Mundial, 27 de janeiro de 2003.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Outra economia, além do capital

ALTERNATIVAS

Espalham-se pelo planeta empreendimentos que organizam produção, comércio e finanças segundo valores e lógicas de solidariedade. Carola Rentjes, uma das referências internacionais desse universo, inaugura, no Le Monde Diplomatique Brasil, uma coluna sobre ele
Carola Reintjes

Por tradição, quando falamos de economia (local e global, micro e macro), militantes, movimentos, pensadores e intelectuais da denominada esquerda [1] têm mantido uma atitude ambígua ante o terreno lamacento que a rodeia, associando-a, per si, com economia globalizada, a cara oculta da democracia, a mão invisível (mas onipotente) do mercado e o capitalismo em suas expressões mais excludentes.

Ante essa associação negativa, os mesmos atores têm preferido, em sua grande maioria, excluir o terreno econômico de sua intervenção cívica e política. Em sua agenda social e política entraram reivindicações dirigidas à economia globalizada-neoliberal-neoconservadora — mas não visões alternativas do mundo econômico. Teremos limitado nossa capacidade criativa de visualizar e construir outro mundo possivel a propostas e alternativas do âmbito social, político e cultural — sem vislumbrar outra economia possível?

Entretando, milhares de pessoas — formiguinhas em todos os cantos no mundo — não somente se atreveram a sonhar com outra economia mas também a estão construindo. Passo a passo, ladrilho por ladrilho. A utopia é o máximo do possível. E esse axioma vale, também, para o mundo da economia, como bem demonstram tais iniciativas de economia alternativa e solidária.

Elas surgem da necessidade de dar resposta à progressiva deterioração social, econômica e cultural que vivem as populações, devido à da crescente desumanização da economia, à degradação do meio-ambiente e da qualidade de vida, à falta de valores éticos, à piora paulatina do nível de cultura e de educação. As conseqüências mais evidentes dessa desumanização da economia são: o aumento da pobreza e as desigualdades sociais, afetando em especial a população vunerável (mulheres, menores, indígenas, etc.), a exclusão social e econômica, o desemprego e o emprego precário. A magnitude dos problemas que impregna nossa realidade cotidiana nos afeta, nos implica, nos põe diante de desafios e nos exige respostas que se desviem de tais carências e injustiças.

A Economia Alternativa e Solidária é uma forma de gerir a economia e a sociedade, e engloba todas as atividades da cadeia produtiva/comercial/financeira, até o consumo. Com seu enfoque global e sua marca ética, contribui para democratizar e socializar a economia e democratizar a sociedade.

Um mundo de novas práticas e princípios

A nova economia consiste em produzir critérios ambientais e sociais, organizar as iniciativas sociais e empresariais, e os que nela trabalham em entes auto-gestionados. Significa produzir, gerir, comercializar e consumir com critérios éticos. Depositar a poupança em sistemas financeiros baseados em solidariedade. Consumir produtos ecológicos ou de comércio justo. Usar dinheiro social ou moeda local. Tecer redes de troca solidária, de desenvolvimento local, ou de serviços da proximidade, educativos ou culturais. Todas essas manifestações contribuem no dia-a-dia — e a partir do setor econômico — para construir outra globalização.

O leque de setores envolvidos é extenso. Um elemento unificador é a busca e realização de atividades econômicas de alto componente social, ambiental e solidário. Diferentes realidades e redes setoriais representam, em todas as regiões do planeta, a face mais conhecida de tal realidade: consumo ético, finanças solidárias, comércio justo de bens e serviços. Agroecologia e agricultura sustentáveis. Meios e redes de comunicação alternativa. Desenvolvimento local, desenvolvimento rural, projetos comunitários no meio urbano. Diálogos interculturais. Sistemas de trocas solidárias e de moeda local e consumo responsável são algumas das tentativas concretas de resposta coletiva e criativa na busca de outra economia possível.

Nos últimos anos, o lema do Fórum Social Mundial tem ganhado notoriedade: Outro mundo é possível. A Economia Alternativa e Solidária contribui na construção desse outro mundo. Não existe a possibilidade de transformação política e social se não há transformação econômica.
Suprir desejos, evitando consumismo

Essa aproximação inovadora visa recuperar as raízes da economia, colocando-a a serviço das necessidades de todas as pessoas. Evita-se, assim, que tais necessidades assumam apenas a forma de demanda de mercadorias, que é estimulada pela propaganda consumista do capital e termina varrendo a rica variação cultural que deveria caracterizar um mundo global. O desafio consiste em repensar, reorientar e reconstruir a economia, para colocá-la a serviço do ser humano e da natureza.

O principal sujeito do desenvolvimento político, socioeconômico e cultural deve ser o próprio povo, pessoa por pessoa. Outro mundo é possível, e outro mundo poderá ser construído, somente se alcançarmos a transformação de valores, estruturas e relações econômicas, das pessoas e comunidade para o mundo. Nosso objetivo final é uma mundialização cooperativa da solidariedade, uma economia (do grego eco-nomia) recriada como a gestão e o cuidado (nomia) da casa (oikos), desde o doméstico, o lar e a comunidade local até o Planeta Terra
Tradução: Gabriela Leite

[1] Na hipótese de que tal ente ideológico-homogêneo exista e, é claro, sem a pretensão de querer definir esta esquerda, ou de julgar se existe a esquerda

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Desenvolvimento Territorial Sustentável

Os novos paradigmas de acäo social e intervencäo do Estado nas áreas rurais partem de conceitos ainda em experimentacäo: Territorialidade, sustentabilidade e desenvolvimento. Conseguiremos conviver com processos sociais diferenciados e contraditórios?

Philippe Bonnal

A incorporação da territorialidade e da sustentabilidade nas políticas públicas brasileiras voltadas para o campo é, hoje em dia, uma realidade. Surgidas durante a década passada, essas noções foram se incorporando progressivamente nas agendas das políticas públicas, notadamente agrícolas e rurais, com uma aceleração marcada a partir da metade do primeiro governo Lula.

Esta realidade revela-se primeiramente pelo fato de que tais noções são adotadas, pelo menos de forma parcial, por um número cada vez mais expressivo de entidades governamentais nos níveis federal, estadual e municipal. Restringindo-se a observação ao nível federal, constata-se que vários ministérios implantaram ou ampliaram, no transcurso dos quatro últimos anos, importantes programas de abrangência nacional ou macrorregional, os quais se referem, de uma forma ou outra, à territorialidade e à sustentabilidade. Citaremos alguns desses programas.

O Programa de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (PDSTR), da Secretaria do
Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SDT/MDA), é, sem dúvida, o programa de maior destaque, com o objetivo de melhorar os níveis de qualidade de vida dos agricultores familiares e comunidades agrárias, mediante o apoio às iniciativas dos atores locais organizados. Trata-se de induzir dinâmicas de desenvolvimento econômico e social via projetos empreendidos pelos atores locais. Este programa, fundamentado em acordos de cooperação entre entidades dos territórios e a administração pública, se destaca por conceber o território como um espaço construído em torno de uma "identidade" local - seja ela já afirmada ou ainda por ser construída - e da coesão social, cultural e territorial. A base dos acordos se encontra no Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável, que congrega os elementos do diagnóstico territorial, as visões compartilhadas do futuro pelos atores locais e os projetos coletivos definidos em diferentes áreas: infra-estrutura, capacitação, apoio às associações e cooperativas, apoio às atividades comerciais e cooperação institucional. Assim sendo, o programa, de nível federal, é estruturado em torno da idéia de território construído, apesar de o recorte territorial ser realizado em nível estadual.

No Ministério do Meio Ambiente, destaca-se o Programa de Desenvolvimento Sócio-ambiental da Produção Familiar Rural (Proambiente), implementado a partir da iniciativa dos movimentos sociais e que, depois de 2003, passou a ser um programa de política pública. Esse programa contempla a formação de pólos pioneiros, que são territórios definidos com a preocupação de promover sistemas de produção e atividades adaptados ao entorno ambiental, local com o intuito de melhorar a situação dos agricultores familiares e tornar desnecessária a invasão de novas áreas na Amazônia.

Outras iniciativas, tais como o Programa Gestão Ambiental Rural (GESTAR) ou Agenda 21 locais, também fazem fortes referências à territorialidade e particularmente à sustentabilidade ambiental.

No Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), destaca-se o programa de Consórcios
Intermunicipais de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (Consad's), cujo objetivo é
fomentar iniciativas na escala supramunicipal na forma de projetos de dinamização econômica, para garantir, localmente, a segurança alimentar. Herdeiro de um programa anterior, os Consad's baseiam-se numa perspectiva de desenvolvimento local, ativada em territórios de ação os quais são delimitados pela administração pública, e na implementação de projetos envolvendo organizações sociais locais.

Num enfoque mais amplo, ou seja, não restrito aos produtores familiares, nem mesmo ao
setor agrícola, o Ministério do Desenvolvimento Industrial e Comércio (MDIC) implementou o programa Arranjos Produtivos Locais (APL) para ajudar as pequenas e médias empresas, incluindo evidentemente aquelas do setor agropecuário, para usufruir vantagens de uma localização favorável e empreender processos de desenvolvimento local, com efeitos econômicos positivos para a coletividade.

Ainda mais significativa, é a experiência do Plano Safra Territorial, que vem constituindo uma ponte entre as políticas de crédito para agricultura familiar, as de desenvolvimento territorial e as de segurança alimentar, implementadas por dois ministérios diferentes, MDA e MDS.

A realidade desses programas de desenvolvimento territorial se manifesta ainda pela magnitude da população e da área rural atingidas. Segundo informações dos próprios ministérios, os programas mencionados anteriormente atingem mais da metade dos produtores familiares e mais de um terço do espaço nacional. Infelizmente, os recursos financeiros não seguem o mesmo patamar, o que também explica, às vezes, a modéstia dos resultados gerados por alguns projetos territoriais.

A emergência dessas novas políticas remete em primeiro lugar à evolução do referencial
internacional sobre a ação pública, ocorrida durante os anos 1980 e 1990, referentes à redução do papel do Estado, à promoção da descentralização e da subsidiariedade,
e à introdução da preocupação da sustentabilidade, que deu lugar a um sem número de experiências em diversos países. Assim sendo, trata-se de políticas ainda novas, caracterizadas por um forte componente de experimentação e aprendizagem.

Em nível nacional, e em curto prazo, a promoção das noções de territorialidade e de sustentabilidade nas agendas públicas se justificam pela preocupação de reequilibragem territorial e social, fortemente presente nos dois governos Lula, a qual conforma o bojo do plano plurianual 2004-2007. Neste sentido, a territorialidade é frequentemente concebida como uma estratégia eficiente para incentivar o desenvolvimento econômico e social de regiões menos desenvolvidas. Em longo prazo, este novo enfoque de políticas públicas se insere dentro da dinâmica de revisão do papel do Estado na lógica do fortalecimento do modelo democrático-liberal que vem sendo implementado gradativamente, desde meados dos anos 1980.

Paradoxalmente, a atrelagem entre as noções de desenvolvimento, territorialidade, sustentabilidade e os objetivos de: combate à pobreza rural e de diminuição da desigualdade, pode constituir ao mesmo tempo a força e a fraqueza dos programas de desenvolvimento territorial sustentável no Brasil. A força vem de que a relação entre essas diversas preocupações e objetivos confere a essas políticas uma identidade marcada que as diferencia das demais políticas especificas de índole econômico, social ou ambiental. A fraqueza vem do fato de que a realidade da dita relação é discutível e constitui o temário de reflexões permanentes entre científicos, gestores de políticas públicas e representantes dos órgãos da sociedade civil.

Foi precisamente o que aconteceu na oportunidade do colóquio internacional,
celebrado em Florianópolis, nos dias 22, 23 e 25 de agosto passado e dedicado ao Desenvolvimento Territorial Sustentável. Este colóquio, organizado por entidades de pesquisa e ensino superior do Brasil, da França e do Canadá,2 trouxe à tona alguns dos questionamentos que interpelam quem trabalha com os enfoques da territorialidade e da sustentabilidade. Sem pretensão nenhuma de querer resumir aqui as ricas apresentações e discussões que se realizaram neste evento, sublinharemos alguns dos debates contraditórios que nos parecem muito relevantes na observação das experiências brasileiras.

Um primeiro debate trata da relação entre a territorialidade e a sustentabilidade,
notadamente no caso de experiências de desenvolvimento territorial, enfocadas numa perspectiva de desenvolvimento econômico, como é o caso do programa Arranjos Produtivos Localizados, ou, de forma mais geral, dos projetos territoriais de concentração econômica, construídos sobre o modelo dos distritos industriais italianos. Esses projetos territoriais objetivam geralmente dinamizar a economia territorial, utilizando, da melhor forma possível, os recursos locais - existentes ou construídos - para afirmar vantagens comparativas. A referência à sustentabilidade é, em forma geral, usada para caracterizar os efeitos positivos das atividades econômicas, que freqüentemente se limitam aos aspectos sociais (emprego, renda), ampliados pelo fato da economia territorial depender fortemente das relações sociais locais. Contudo, objetivamente, a sustentabilidade pode ser considerada como bastante desconectada das dinâmicas territoriais de desenvolvimento econômico.

O segundo debate é ligado ao papel do Estado nos processos de desenvolvimento territorial
sustentável e a sua relação com os atores privados. Duas realidades se opõem. De um lado, atribuise um papel de destaque ao Estado, encarregado, mediante políticas públicas, de orientar o comportamento dos atores locais (territoriais) para resolver problemas de sociedade. É notadamente o enfoque dos Consad's. A posição oposta é de quem considera que o desenvolvimento territorial sustentável nasça da preocupação dos atores sociais e constitua o resultado de um projeto coletivo. Neste caso, o Estado é considerado apenas como um ator, até secundário, cujo papel fundamental é de facilitar a ação coletiva.

Uma contradição pode aparecer quando o Estado espera resolver problemas de sociedade através do incentivo de ações coletivas, uma vez que os atores territoriais podem ter objetivos próprios que divergem do imaginado pelo Estado. Esta situação pode ser a do programa PDSTR, no que diz respeito à redução da pobreza e da desigualdade. Contudo, poder-se-ia considerar que se trata de um falso debate, gerado pelo uso da mesma denominação "desenvolvimento territorial sustentável", para designar dois processos distintos: a territorialização das políticas públicas, de um lado e, de outro, a construção social de território.

O terceiro debate trata do mecanismo do desenvolvimento sustentável. A oposição se dá entre, de um lado, quem concebe a sustentabilidade como uma preocupação dos
gestores públicos e dos atores privados, para articular as atividades econômicas dentro de considerações sociais e ambientais e, de outro lado, de quem estima que o desenvolvimento sustentável implica numa redefinição fundamental do modelo produtivo. No primeiro caso, trata-se de melhorar o funcionamento das sociedades capitalistas, trabalhando as interfaces economia-sociedade e economia-meio ambiente, mediante a regulamentação, o melhoramento tecnológico e a "engenharia social", ou seja, a organização e a mobilização dos diversos segmentos sociais. No segundo caso, estima-se que a sustentabilidade, implica numa revisão dos processos de produção, numa contestação da hegemonia da economia sobre os aspectos sociais e ambientais e na definição de uma economia solidária que permita tomar em conta novos desafios ligados a uma crise sócioambiental inédita.

Em guisa de conclusão, cabe sublinhar aqui, que o desafio levantado pela aproximação dos três
termos "desenvolvimento" "territorial" "sustentável", remete a dinâmicas diferentes e até
contraditórias, tais como: mudança e conservação, modernidade e tradição, desenvolvimento
econômico social e respeito ao meio ambiente. Essas contradições, justificadas pelo novo contexto da elaboração das políticas públicas, incitam a questionar e a renovar a
noção atual de desenvolvimento.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Ecologia Poética

Salve uma palavra antes que morra no senso comum
por Fabrício Carpinejar

No interior do Brasil, a expressão “dois dedos de prosa” – geralmente acompanhada de um dedinho de cana, uma xícara de café ou um trago de mate com água pelando – significa aquela conversa franca, desarmada, informal. Papo sincero de amigo. Conversê. Nessa troca de idéias aparece muita coisa, diz-se muita verdade, chega-se mais próximo da essência das coisas...

Como pensar em ecologia sem incluir a preservação das palavras? E com a ecologia das palavras, quem se preocupa? E os lençóis subterrâneos da fala que são contaminados pelo sarcasmo, pelo cinismo e, sobretudo, pela indiferença, quem cuida de sua prevenção?

Corremos o risco de perder a natureza quando deixamos que a linguagem fale em nosso lugar e não mais falamos por ela. Quando somente transferimos a responsabilidade de dizer e de nomear pelo ato de repetir.

Não é o comportamento que condiciona as palavras. Mas as palavras formam o comportamento. As palavras são o comportamento. Somos palavras.

De que adianta separar o lixo seco do orgânico se não separamos a linguagem orgânica da seca em nossa rotina? E a coleta seletiva da língua, onde fica?

De que vale cuidar do desperdício de água se não cuidamos também do desperdício de linguagem?

Não será igualmente criminoso usar palavras desnecessárias, sem entusiasmo, sem força de vontade, sem alegria? Por descaso ou por descanso. Para ser compreendido e não pensar. Pela pressa, sendo que a pressa aumenta o esquecimento, inibe a lembrança.

Por dia, quantas palavras são reproduzidas desprovidas de sentido? Lançadas na terra como latas de alumínio, que demoram mais de um século para se decompor.

Um lugar-comum é tão poluente quanto pilhas e baterias do celular. Expressões que nada têm de pessoal, que não permitem a descoberta ou o deslumbramento, estancam a circulação do afeto. Cessam o gosto de falar. Interrompem o gosto de ouvir.

Quantos fósseis são abandonados no cotidiano do idioma, quantos verbetes esperam sua chance de tratamento no aterro sanitário do dicionário? Será que não viramos fantasmas se portamos uma língua morta?

Poderíamos latir, poderíamos miar, poderíamos uivar, tudo isso é ainda comunicação. Mas falar não é somente comunicar, é se comprometer com a direção do timbre.

Palavras são de vidro. Palavras são de metal. Palavras são de plástico. Palavras são de papel. Não se pode colocar todas com o mesmo peso, no mesmo destino. É preciso discerni-las. Uma criança me entenderia.

Tolerância, por exemplo, é de vidro. Reboa por dentro. Faz volume antes de acabar. Não pode ser jogada fora, pois levará milhões de anos antes de virar pó.

Respeito, por sua vez, é de metal. Inteiriça. Difícil de quebrar. Fala-se de uma única vez como uma lâmina.

Condescendência é de papel, o acento vai lá no fim, suscetível aos rasgos da tesoura e das mãos ansiosas. Soletre, veja, imagine. Deite a voz, não fique de pé.

Assim como reciclamos o lixo, as palavras dependem da renovação. Mudar a ordem, produzir significação, exercitar gentilezas, valorizar detalhes. Não deixá-las paradas, desacompanhadas, viúvas.

Talvez seja daí minha incompetência em me desfazer do arranjo de rosas que recebo no aniversário de casamento. Desligo as pétalas do miolo e espalho as rosas nos livros. Fazem sombras para as frases.

É poluente dizer ao filho “nem se parece comigo” para ameaçá-lo. Uma convenção a que a maioria recorre para se livrar do cuidado, sacrificando um momento de particularizar sua experiência paterna e materna. Por que não procurar afirmar “você se parece comigo mesmo quando não se parece”?

Ou há algo mais solitário e desolador que resmungar “eu avisei” para sua mulher quando ela erra? Mostra que já a estava condenando antes de qualquer resultado e atitude. Em vez de cobrar, por que não compreender? Transformar o lixo hospitalar (sim, corta-se um braço dela com essa sentença) em adubo de frutas com a simples concisão de “a gente resolve”.

São períodos postiços, artificiais, fingidos, que corrompem a respiração. Ao encontrar um colega antigo, logo nos despedimos: “Vamos nos ligar?” Isso significa o contrário, não vou telefonar nos próximos três anos.

Até que ponto não se empregam palavras para se esconder o que se quer, para disfarçar, para ocultar? Quantos sinônimos para não dizer absolutamente nada. Para se afastar do que realmente se desejava declarar. Foge-se da palavra certa pela palavra aproximada. Uma
palavra vizinha não mora no mesmo lugar da verdade.

Palavra é sentimento. Mas – cuidado – as palavras não podem sentir sozinhas.

Palavra é poder. Ao esgotar seu significado, esgotamos nossa permanência.