quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Mudança de poder na agricultura

Por Carlos Walter Porto-Gonçalves

O debate a respeito dos transgênicos e da mudança climática global demonstra que a ciência está cada vez mais politizada, o que torna ainda mais necessária a exigência da precisão conceitual. Assim, devemos deixar de lado o conceito de OGM (organismo geneticamente modificado), que é tudo o que há na evolução das espécies, dentro de um processo que se dá na natureza sempre por modificação genética não intencional. Cultivares são criações humanas co-evoluindo com processos naturais por tempos longos.

O que está em debate hoje não são os OGMs, mas os OLMs (organismos em laboratório modificados), em que o processo de criação não se dá de modo livre na relação da sociedade com a natureza, mas a partir de laboratórios cada vez mais ligados ao mundo financeiro e industrial. Não estamos mais diante da agricultura tradicional, mas de negócios que operam no campo como agronegócio -forma como o complexo técnico-científico-empresarial quer se autodenominar.

A partir de 1945, com o uso da bomba atômica, quando a relação entre o conhecimento científico e o poder, por meio da guerra, ficou por demais explícita, a ciência tem se tornado um assunto sério demais para ficar nas mãos dos cientistas. Mais recentemente, essa relação vem se tornando mais banal ao chegar mais perto do nosso cotidiano.

A relação entre ciência e poder precisa ser levada em conta por exigência da própria ética, na medida em que tem implicações na natureza da produção do conhecimento, sobretudo, mas não exclusivamente, ante as condições materiais e de financiamento. As parcerias entre o Estado e as empresas, cada vez mais comuns, têm colocado novas e complexas questões, como o caráter público do conhecimento, que se traduz na exigência de publicação, e o caráter privado da instituição empresarial, que exige a proteção sigilosa do conhecimento e seu patenteamento.

A produção de conhecimento num setor fundamental para a existência humana muda de lugar com os OLMs, já que diz respeito à reprodução energético-alimentar da nossa espécie, a agricultura e a criação de animais. Estamos assistindo, com o deslocamento da produção de cultivares para os OLMs, à mudança do "locus" de poder, que passa dos campos e dos camponeses e dos mais variados povos originários para os grandes laboratórios do complexo técnico-científico-empresarial. Enfim, mais que uma revolução tecnológica, estamos ante uma mudança nas relações sociais e de poder por meio da tecnologia.

Com a recente onda pela expansão da monocultura visando a produção de combustível (etanol e diesel de origem vegetal), surge um novo complexo de poder técnico-científico-industrial-financeiro. Isso vem se configurando com a associação de empresas automobilísticas ao ramo da biotecnologia, industrializando a agricultura e submetendo cada vez mais o destino não só das plantações e dos povos originários e camponeses mas também de toda a humanidade aos desígnios de meia dúzia de empresas.

A DuPont se associou à Pionner Hi-Bred (sementes) e à British Petroleum. A Toyota se une à British Petroleum no Canadá para produzir etanol. A Volkswagen acaba de fazer uma parceria com a ADM (alimentos). A Royal Dutch Shell se lança na produção de óleo carburante, e a Cargill, na produção de óleo diesel.

O melhor exemplo disso é a aliança dos "agronegociantes" brasileiros com o setor dos combustíveis fósseis dos EUA, consagrada com a criação da Associação Interamericana de Etanol, que tem como seus principais dirigentes o ex-governador da Flórida, Jeb Bush, e o ex-ministro da Agricultura do governo Lula, Roberto Rodrigues.

As conseqüências do que está em curso são bastante graves, haja vista que, desde o século 19, os combustíveis fósseis foram colocados à disposição da produção de alimentos (máquinas a vapor nos tratores e nas colheitadeiras, por exemplo).

Atualmente, é a agricultura que se coloca a serviço da máquina a vapor para dar sobrevida a um modo de vida sabidamente insustentável do ponto de vista ecológico e que tende a agravar a injustiça social. A diversidade cultural está ameaçada, e tudo indica que o destino da humanidade e do planeta dependerá da solução dessa luta, que, cada vez mais, vem exigindo a atenção de todos.

CARLOS WALTER PORTO-GONÇALVES , 58, é doutor em geografia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e coordenador do programa da pós-graduação da UFF (Universidade Federal Fluminense). É autor de "Globalização da Natureza e a Natureza da Globalização".

sábado, 24 de novembro de 2007

Já calculou a sua Pegada Ecológica?

Alguma vez pensou na quantidade de Natureza necessária para manter o seu estilo de vida? Já imaginou avaliar o impacto no Planeta das suas opções no dia-a-dia, daquilo que consome e dos resíduos que gera? Com este questionário ficará a conhecer esse impacto.
Entre no site
http://www.earthday.net/footprint/info.asp e calcule a sua Pegada Ecológica fazendo uma estimativa da quantidade de recursos necessária para produzir os bens e serviços que consome e absorver os resíduos que produz.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Pegada Ecológica

Homem já consome 25% a mais do que a Terra tem para oferecer
16 de Novembro de 2006 Fonte: Instituto Akatu

O homem está consumindo, anualmente, 25% mais recursos naturais do
que a Terra é capaz de repor, de acordo com o Relatório Planeta Vivo 2006, lançado recentemente pela Rede WWF. Se a situação insustentável do planeta continuar como está atualmente, levando-se em conta o crescimento populacional, a evolução tecnológica e o desenvolvimento econômico, serão necessários, já em 2050, dois planetas Terra para suprir a demanda da humanidade, de acordo com a projeção do documento. Essa situação pode comprometer a sustentabilidade da vida no planeta como conhecemos hoje, inclusive da vida humana. Os dados, obtidos com base no cálculo da “pegada ecológica”, indicam que o Brasil está na média de consumo anual do mundo - o que não significa que seja bom. A pegada ecológica é uma ferramenta que estima a quantidade de recursos naturais necessária para produzir os bens e serviços que um indivíduo ou comunidade consomem e o espaço necessário para absorver os resíduos que produzem. Segundo a WWF, o equilíbrio seria mantido caso a média mundial de pegada ecológica fosse de 1,8 hectares por pessoa ao ano. O Brasil já consome 2,2 hectares, ou seja, cerca de 22% a mais do que a capacidade da Terra de se renovar. Já nos EUA, por exemplo, a pegada ecológica é de 9,6 hectares por pessoa ao ano. O país é o segundo colocado na lista dos maiores “consumidores” de recursos naturais, atrás dos Emirados Árabes Unidos, com 11,9 hectares anuais per capita. Nesta lista, estão também Finlândia, Canadá, Estônia, Suécia, Kuait (país com menos de um milhão de habitantes), Nova Zelândia e Noruega. Esses países estão nas posições do topo principalmente pela queima em excesso de combustíveis fósseis, que libera gás carbônico (CO2) na atmosfera, o principal causador do aquecimento global. Todo consumo causa impacto que pode ser positivo ou negativo. Esse impacto afeta a natureza, as relações sociais, a economia e o próprio indivíduo. O consumidor consciente pode minimizar os danos causados à Terra ao ter consciência dos impactos que seus hábitos de consumo têm sobre o planeta e ao buscar maximizar os impactos positivos e minimizar os negativos, dando, por exemplo, preferências a produtos certificados, cuja produção minimiza os impactos ambientais. CO2 na pegada ecológica No cálculo da pegada ecológica é computado também a área necessária para absorção do gás carbônico (CO2) emitido pelas atividades do homem como, por exemplo, a partir da queima de combustíveis fósseis. Algumas ações simples podem ser realizadas no dia-a-dia para reduzir a emissão de gás carbônico, cooperando para minimizar o aquecimento global e também para reduzir a pegada ecológica. Entre essas ações, o consumidor pode, por exemplo, usar menos o carro, optando por transporte público, como trem, ônibus ou metrô, andar de bicicleta ou a pé e ainda praticar a carona solidária entre pessoas que fazem itinerários semelhantes. Se, uma vez por semana, um indivíduo deixar o carro em casa para ir ao trabalho, considerando um trajeto de 20 quilômetros, ao longo de um ano inteiro, deixará de lançar para a atmosfera 440 quilos de gás carbônico, como resultado da queima do combustível. Pode parecer pouco, mas essa mesma quantidade de gás carbônico que um homem levou apenas 52 dias para emitir demora 20 anos para ser absorvida pelo processo de fotossíntese por uma árvore de grande porte. A região latino-americana é apontada pelo relatório como a que, aparentemente, está mais próxima da sustentabilidade. Com uma média de pegada ecológica de 2 hectares per capita ao ano, acima da capacidade média da Terra (1,8 hectare per capita ao ano), a América Latina alcança esse status por não superar a biocapacidade de sua própria região, de 5,4 hectares disponíveis por habitante ao ano. O bloco latino-americano fica, assim, em melhores condições que a África, que tem baixo consumo energético e sua pegada é de 1,1 hectare por pessoa, mas é muito subdesenvolvido.

sábado, 17 de novembro de 2007

A SUSTENTABILIDADE PELO ECOSSOCIALISMO

Abaixo segue declaração de princípios e objetivos do Manifesto Ecossocialista, discutido no III FSM. A oficina contou com a participação de mais de 250 pessoas, de 16 estados, incluindo muitas lideranças e militantes da esquerda e do movimento ambiental.

Declaração de Princípios e objetivos da Rede Brasil de Ecossocialistas

Não existe futuro para qualquer pensamento político que não seja ecologicamente sustentável. A crise ecológica é um fenômeno Global, que deve ser tratado local e mundialmente com a mesma intensidade.

Em sua ofensiva, para transformar tudo em propriedade e mercadoria, o capital patenteia a vida, apropria-se da biodiversidade, quer impor os produtos transgênicos, privatizar, mercantilizar e controlar as reservas florestais e a água.

Entender que a lógica da produção e consumo capitalistas funciona como se ela mesma fosse o seu próprio objetivo não basta, temos que transpor a barreira do entendimento ortodoxo, objetivado puramente nos termos das antigas vitórias da classe operária e seu partido, e reconhecer que a pauta ecológica impõe uma nova identificação de atores da cena social e na composição do bloco de forças em torno da aliança operário-camponesa.

A rede de ecossocialistas é formada por mulheres e homens que acreditam que o ambiente não pertence a indivíduos, grupos ou empresas, nem mesmo a uma só espécie.

Que lutam para que cada ser humano existente no planeta tenha os mesmos direitos a dispor dos elementos ambientais e sociais que necessita e que, quando estes forem limitados, ou mesmo insuficientes, a divisão deve ser justa e planejada. Nunca definida por guerras, competição ou outras formas de disputa.

Que compreendem que a humanidade deve limitar e adequar as suas atividades produtivas, respeitando os outros seres e processos de manutenção da vida no Planeta.

Homens e mulheres que acreditam que o eco-socialismo é a realização do socialismo, livre dos equívocos burocratizantes e centralizadores do chamado socialismo real, e atualizado ao contexto da crise ecológica.

Lutamos por uma sociedade sem a exploração de pessoas sobre pessoas, onde o trabalho vise a libertação e não alienação humana. Uma sociedade movida por energia de fontes renováveis, onde a produção reaproveite totalmente os materiais utilizados, sem gerar resíduos.

Lutamos por um Planeta onde o eterno ciclo natural de extinção e renovação de espécies, mantenha-se determinado por ritmos naturais e não mais dentro do ritmo avassalador dos dias de hoje, em que muitas espécies sucumbem com enorme rapidez, por causa das ações da humanidade, que fica cada vez mais sozinha na superfície da terra.

Um planeta habitado por espécies originadas nos processos naturais de criação e mutação naturais, onde se insere a humanidade.

Uma sociedade onde todos tem direito básico ao seu território, a um espaço para viver as superfície da terra e o espaço ambiental não é objeto de especulação imobiliária ou instrumento de Dominação e exclusão.

Onde a terra fica para quem nela trabalha e vive, no campo e na cidade. E falamos de cidades sustentáveis.Onde as pessoas tem consciência de que toda a produção utiliza elementos ambientais, conhecimentos e estruturas sociais.

E que, portanto, parte de produção é de propriedade social e toda pessoa tem direito de acesso aos resultados da produção social, que lhe permita viver em condições dignas.Uma sociedade que não aceite riscos sócio-ambientais.

Que entenda que a inexistência de provas para demonstrar que uma tecnologia é perigosa não basta para a sua aceitação, pois quando surge uma inovação, normalmente ainda não se tem conhecimento dos riscos.

Ao contrário, é preciso que a tecnologia prove ser segura e constituir-se em instrumento de melhoria sócio-ambiental da sociedade, em relação ao existente.

Lutamos por um tempo onde a diversidade social é fruto da livre determinação de pessoas e povos. As diferenças culturais, étnicas, de raça, de gênero e de opção sexual não podem jamais ser instrumento de negação de igualdade de direitos sociais.

Enfim, a rede de ecossocialistas é formada por pessoas que dedicam suas vidas para defender a vida, contra a barbárie e pela paz no planeta.

Porto Alegre, III Fórum Social Mundial, 27 de janeiro de 2003.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Outra economia, além do capital

ALTERNATIVAS

Espalham-se pelo planeta empreendimentos que organizam produção, comércio e finanças segundo valores e lógicas de solidariedade. Carola Rentjes, uma das referências internacionais desse universo, inaugura, no Le Monde Diplomatique Brasil, uma coluna sobre ele
Carola Reintjes

Por tradição, quando falamos de economia (local e global, micro e macro), militantes, movimentos, pensadores e intelectuais da denominada esquerda [1] têm mantido uma atitude ambígua ante o terreno lamacento que a rodeia, associando-a, per si, com economia globalizada, a cara oculta da democracia, a mão invisível (mas onipotente) do mercado e o capitalismo em suas expressões mais excludentes.

Ante essa associação negativa, os mesmos atores têm preferido, em sua grande maioria, excluir o terreno econômico de sua intervenção cívica e política. Em sua agenda social e política entraram reivindicações dirigidas à economia globalizada-neoliberal-neoconservadora — mas não visões alternativas do mundo econômico. Teremos limitado nossa capacidade criativa de visualizar e construir outro mundo possivel a propostas e alternativas do âmbito social, político e cultural — sem vislumbrar outra economia possível?

Entretando, milhares de pessoas — formiguinhas em todos os cantos no mundo — não somente se atreveram a sonhar com outra economia mas também a estão construindo. Passo a passo, ladrilho por ladrilho. A utopia é o máximo do possível. E esse axioma vale, também, para o mundo da economia, como bem demonstram tais iniciativas de economia alternativa e solidária.

Elas surgem da necessidade de dar resposta à progressiva deterioração social, econômica e cultural que vivem as populações, devido à da crescente desumanização da economia, à degradação do meio-ambiente e da qualidade de vida, à falta de valores éticos, à piora paulatina do nível de cultura e de educação. As conseqüências mais evidentes dessa desumanização da economia são: o aumento da pobreza e as desigualdades sociais, afetando em especial a população vunerável (mulheres, menores, indígenas, etc.), a exclusão social e econômica, o desemprego e o emprego precário. A magnitude dos problemas que impregna nossa realidade cotidiana nos afeta, nos implica, nos põe diante de desafios e nos exige respostas que se desviem de tais carências e injustiças.

A Economia Alternativa e Solidária é uma forma de gerir a economia e a sociedade, e engloba todas as atividades da cadeia produtiva/comercial/financeira, até o consumo. Com seu enfoque global e sua marca ética, contribui para democratizar e socializar a economia e democratizar a sociedade.

Um mundo de novas práticas e princípios

A nova economia consiste em produzir critérios ambientais e sociais, organizar as iniciativas sociais e empresariais, e os que nela trabalham em entes auto-gestionados. Significa produzir, gerir, comercializar e consumir com critérios éticos. Depositar a poupança em sistemas financeiros baseados em solidariedade. Consumir produtos ecológicos ou de comércio justo. Usar dinheiro social ou moeda local. Tecer redes de troca solidária, de desenvolvimento local, ou de serviços da proximidade, educativos ou culturais. Todas essas manifestações contribuem no dia-a-dia — e a partir do setor econômico — para construir outra globalização.

O leque de setores envolvidos é extenso. Um elemento unificador é a busca e realização de atividades econômicas de alto componente social, ambiental e solidário. Diferentes realidades e redes setoriais representam, em todas as regiões do planeta, a face mais conhecida de tal realidade: consumo ético, finanças solidárias, comércio justo de bens e serviços. Agroecologia e agricultura sustentáveis. Meios e redes de comunicação alternativa. Desenvolvimento local, desenvolvimento rural, projetos comunitários no meio urbano. Diálogos interculturais. Sistemas de trocas solidárias e de moeda local e consumo responsável são algumas das tentativas concretas de resposta coletiva e criativa na busca de outra economia possível.

Nos últimos anos, o lema do Fórum Social Mundial tem ganhado notoriedade: Outro mundo é possível. A Economia Alternativa e Solidária contribui na construção desse outro mundo. Não existe a possibilidade de transformação política e social se não há transformação econômica.
Suprir desejos, evitando consumismo

Essa aproximação inovadora visa recuperar as raízes da economia, colocando-a a serviço das necessidades de todas as pessoas. Evita-se, assim, que tais necessidades assumam apenas a forma de demanda de mercadorias, que é estimulada pela propaganda consumista do capital e termina varrendo a rica variação cultural que deveria caracterizar um mundo global. O desafio consiste em repensar, reorientar e reconstruir a economia, para colocá-la a serviço do ser humano e da natureza.

O principal sujeito do desenvolvimento político, socioeconômico e cultural deve ser o próprio povo, pessoa por pessoa. Outro mundo é possível, e outro mundo poderá ser construído, somente se alcançarmos a transformação de valores, estruturas e relações econômicas, das pessoas e comunidade para o mundo. Nosso objetivo final é uma mundialização cooperativa da solidariedade, uma economia (do grego eco-nomia) recriada como a gestão e o cuidado (nomia) da casa (oikos), desde o doméstico, o lar e a comunidade local até o Planeta Terra
Tradução: Gabriela Leite

[1] Na hipótese de que tal ente ideológico-homogêneo exista e, é claro, sem a pretensão de querer definir esta esquerda, ou de julgar se existe a esquerda

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Desenvolvimento Territorial Sustentável

Os novos paradigmas de acäo social e intervencäo do Estado nas áreas rurais partem de conceitos ainda em experimentacäo: Territorialidade, sustentabilidade e desenvolvimento. Conseguiremos conviver com processos sociais diferenciados e contraditórios?

Philippe Bonnal

A incorporação da territorialidade e da sustentabilidade nas políticas públicas brasileiras voltadas para o campo é, hoje em dia, uma realidade. Surgidas durante a década passada, essas noções foram se incorporando progressivamente nas agendas das políticas públicas, notadamente agrícolas e rurais, com uma aceleração marcada a partir da metade do primeiro governo Lula.

Esta realidade revela-se primeiramente pelo fato de que tais noções são adotadas, pelo menos de forma parcial, por um número cada vez mais expressivo de entidades governamentais nos níveis federal, estadual e municipal. Restringindo-se a observação ao nível federal, constata-se que vários ministérios implantaram ou ampliaram, no transcurso dos quatro últimos anos, importantes programas de abrangência nacional ou macrorregional, os quais se referem, de uma forma ou outra, à territorialidade e à sustentabilidade. Citaremos alguns desses programas.

O Programa de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (PDSTR), da Secretaria do
Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário (SDT/MDA), é, sem dúvida, o programa de maior destaque, com o objetivo de melhorar os níveis de qualidade de vida dos agricultores familiares e comunidades agrárias, mediante o apoio às iniciativas dos atores locais organizados. Trata-se de induzir dinâmicas de desenvolvimento econômico e social via projetos empreendidos pelos atores locais. Este programa, fundamentado em acordos de cooperação entre entidades dos territórios e a administração pública, se destaca por conceber o território como um espaço construído em torno de uma "identidade" local - seja ela já afirmada ou ainda por ser construída - e da coesão social, cultural e territorial. A base dos acordos se encontra no Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável, que congrega os elementos do diagnóstico territorial, as visões compartilhadas do futuro pelos atores locais e os projetos coletivos definidos em diferentes áreas: infra-estrutura, capacitação, apoio às associações e cooperativas, apoio às atividades comerciais e cooperação institucional. Assim sendo, o programa, de nível federal, é estruturado em torno da idéia de território construído, apesar de o recorte territorial ser realizado em nível estadual.

No Ministério do Meio Ambiente, destaca-se o Programa de Desenvolvimento Sócio-ambiental da Produção Familiar Rural (Proambiente), implementado a partir da iniciativa dos movimentos sociais e que, depois de 2003, passou a ser um programa de política pública. Esse programa contempla a formação de pólos pioneiros, que são territórios definidos com a preocupação de promover sistemas de produção e atividades adaptados ao entorno ambiental, local com o intuito de melhorar a situação dos agricultores familiares e tornar desnecessária a invasão de novas áreas na Amazônia.

Outras iniciativas, tais como o Programa Gestão Ambiental Rural (GESTAR) ou Agenda 21 locais, também fazem fortes referências à territorialidade e particularmente à sustentabilidade ambiental.

No Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), destaca-se o programa de Consórcios
Intermunicipais de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (Consad's), cujo objetivo é
fomentar iniciativas na escala supramunicipal na forma de projetos de dinamização econômica, para garantir, localmente, a segurança alimentar. Herdeiro de um programa anterior, os Consad's baseiam-se numa perspectiva de desenvolvimento local, ativada em territórios de ação os quais são delimitados pela administração pública, e na implementação de projetos envolvendo organizações sociais locais.

Num enfoque mais amplo, ou seja, não restrito aos produtores familiares, nem mesmo ao
setor agrícola, o Ministério do Desenvolvimento Industrial e Comércio (MDIC) implementou o programa Arranjos Produtivos Locais (APL) para ajudar as pequenas e médias empresas, incluindo evidentemente aquelas do setor agropecuário, para usufruir vantagens de uma localização favorável e empreender processos de desenvolvimento local, com efeitos econômicos positivos para a coletividade.

Ainda mais significativa, é a experiência do Plano Safra Territorial, que vem constituindo uma ponte entre as políticas de crédito para agricultura familiar, as de desenvolvimento territorial e as de segurança alimentar, implementadas por dois ministérios diferentes, MDA e MDS.

A realidade desses programas de desenvolvimento territorial se manifesta ainda pela magnitude da população e da área rural atingidas. Segundo informações dos próprios ministérios, os programas mencionados anteriormente atingem mais da metade dos produtores familiares e mais de um terço do espaço nacional. Infelizmente, os recursos financeiros não seguem o mesmo patamar, o que também explica, às vezes, a modéstia dos resultados gerados por alguns projetos territoriais.

A emergência dessas novas políticas remete em primeiro lugar à evolução do referencial
internacional sobre a ação pública, ocorrida durante os anos 1980 e 1990, referentes à redução do papel do Estado, à promoção da descentralização e da subsidiariedade,
e à introdução da preocupação da sustentabilidade, que deu lugar a um sem número de experiências em diversos países. Assim sendo, trata-se de políticas ainda novas, caracterizadas por um forte componente de experimentação e aprendizagem.

Em nível nacional, e em curto prazo, a promoção das noções de territorialidade e de sustentabilidade nas agendas públicas se justificam pela preocupação de reequilibragem territorial e social, fortemente presente nos dois governos Lula, a qual conforma o bojo do plano plurianual 2004-2007. Neste sentido, a territorialidade é frequentemente concebida como uma estratégia eficiente para incentivar o desenvolvimento econômico e social de regiões menos desenvolvidas. Em longo prazo, este novo enfoque de políticas públicas se insere dentro da dinâmica de revisão do papel do Estado na lógica do fortalecimento do modelo democrático-liberal que vem sendo implementado gradativamente, desde meados dos anos 1980.

Paradoxalmente, a atrelagem entre as noções de desenvolvimento, territorialidade, sustentabilidade e os objetivos de: combate à pobreza rural e de diminuição da desigualdade, pode constituir ao mesmo tempo a força e a fraqueza dos programas de desenvolvimento territorial sustentável no Brasil. A força vem de que a relação entre essas diversas preocupações e objetivos confere a essas políticas uma identidade marcada que as diferencia das demais políticas especificas de índole econômico, social ou ambiental. A fraqueza vem do fato de que a realidade da dita relação é discutível e constitui o temário de reflexões permanentes entre científicos, gestores de políticas públicas e representantes dos órgãos da sociedade civil.

Foi precisamente o que aconteceu na oportunidade do colóquio internacional,
celebrado em Florianópolis, nos dias 22, 23 e 25 de agosto passado e dedicado ao Desenvolvimento Territorial Sustentável. Este colóquio, organizado por entidades de pesquisa e ensino superior do Brasil, da França e do Canadá,2 trouxe à tona alguns dos questionamentos que interpelam quem trabalha com os enfoques da territorialidade e da sustentabilidade. Sem pretensão nenhuma de querer resumir aqui as ricas apresentações e discussões que se realizaram neste evento, sublinharemos alguns dos debates contraditórios que nos parecem muito relevantes na observação das experiências brasileiras.

Um primeiro debate trata da relação entre a territorialidade e a sustentabilidade,
notadamente no caso de experiências de desenvolvimento territorial, enfocadas numa perspectiva de desenvolvimento econômico, como é o caso do programa Arranjos Produtivos Localizados, ou, de forma mais geral, dos projetos territoriais de concentração econômica, construídos sobre o modelo dos distritos industriais italianos. Esses projetos territoriais objetivam geralmente dinamizar a economia territorial, utilizando, da melhor forma possível, os recursos locais - existentes ou construídos - para afirmar vantagens comparativas. A referência à sustentabilidade é, em forma geral, usada para caracterizar os efeitos positivos das atividades econômicas, que freqüentemente se limitam aos aspectos sociais (emprego, renda), ampliados pelo fato da economia territorial depender fortemente das relações sociais locais. Contudo, objetivamente, a sustentabilidade pode ser considerada como bastante desconectada das dinâmicas territoriais de desenvolvimento econômico.

O segundo debate é ligado ao papel do Estado nos processos de desenvolvimento territorial
sustentável e a sua relação com os atores privados. Duas realidades se opõem. De um lado, atribuise um papel de destaque ao Estado, encarregado, mediante políticas públicas, de orientar o comportamento dos atores locais (territoriais) para resolver problemas de sociedade. É notadamente o enfoque dos Consad's. A posição oposta é de quem considera que o desenvolvimento territorial sustentável nasça da preocupação dos atores sociais e constitua o resultado de um projeto coletivo. Neste caso, o Estado é considerado apenas como um ator, até secundário, cujo papel fundamental é de facilitar a ação coletiva.

Uma contradição pode aparecer quando o Estado espera resolver problemas de sociedade através do incentivo de ações coletivas, uma vez que os atores territoriais podem ter objetivos próprios que divergem do imaginado pelo Estado. Esta situação pode ser a do programa PDSTR, no que diz respeito à redução da pobreza e da desigualdade. Contudo, poder-se-ia considerar que se trata de um falso debate, gerado pelo uso da mesma denominação "desenvolvimento territorial sustentável", para designar dois processos distintos: a territorialização das políticas públicas, de um lado e, de outro, a construção social de território.

O terceiro debate trata do mecanismo do desenvolvimento sustentável. A oposição se dá entre, de um lado, quem concebe a sustentabilidade como uma preocupação dos
gestores públicos e dos atores privados, para articular as atividades econômicas dentro de considerações sociais e ambientais e, de outro lado, de quem estima que o desenvolvimento sustentável implica numa redefinição fundamental do modelo produtivo. No primeiro caso, trata-se de melhorar o funcionamento das sociedades capitalistas, trabalhando as interfaces economia-sociedade e economia-meio ambiente, mediante a regulamentação, o melhoramento tecnológico e a "engenharia social", ou seja, a organização e a mobilização dos diversos segmentos sociais. No segundo caso, estima-se que a sustentabilidade, implica numa revisão dos processos de produção, numa contestação da hegemonia da economia sobre os aspectos sociais e ambientais e na definição de uma economia solidária que permita tomar em conta novos desafios ligados a uma crise sócioambiental inédita.

Em guisa de conclusão, cabe sublinhar aqui, que o desafio levantado pela aproximação dos três
termos "desenvolvimento" "territorial" "sustentável", remete a dinâmicas diferentes e até
contraditórias, tais como: mudança e conservação, modernidade e tradição, desenvolvimento
econômico social e respeito ao meio ambiente. Essas contradições, justificadas pelo novo contexto da elaboração das políticas públicas, incitam a questionar e a renovar a
noção atual de desenvolvimento.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Ecologia Poética

Salve uma palavra antes que morra no senso comum
por Fabrício Carpinejar

No interior do Brasil, a expressão “dois dedos de prosa” – geralmente acompanhada de um dedinho de cana, uma xícara de café ou um trago de mate com água pelando – significa aquela conversa franca, desarmada, informal. Papo sincero de amigo. Conversê. Nessa troca de idéias aparece muita coisa, diz-se muita verdade, chega-se mais próximo da essência das coisas...

Como pensar em ecologia sem incluir a preservação das palavras? E com a ecologia das palavras, quem se preocupa? E os lençóis subterrâneos da fala que são contaminados pelo sarcasmo, pelo cinismo e, sobretudo, pela indiferença, quem cuida de sua prevenção?

Corremos o risco de perder a natureza quando deixamos que a linguagem fale em nosso lugar e não mais falamos por ela. Quando somente transferimos a responsabilidade de dizer e de nomear pelo ato de repetir.

Não é o comportamento que condiciona as palavras. Mas as palavras formam o comportamento. As palavras são o comportamento. Somos palavras.

De que adianta separar o lixo seco do orgânico se não separamos a linguagem orgânica da seca em nossa rotina? E a coleta seletiva da língua, onde fica?

De que vale cuidar do desperdício de água se não cuidamos também do desperdício de linguagem?

Não será igualmente criminoso usar palavras desnecessárias, sem entusiasmo, sem força de vontade, sem alegria? Por descaso ou por descanso. Para ser compreendido e não pensar. Pela pressa, sendo que a pressa aumenta o esquecimento, inibe a lembrança.

Por dia, quantas palavras são reproduzidas desprovidas de sentido? Lançadas na terra como latas de alumínio, que demoram mais de um século para se decompor.

Um lugar-comum é tão poluente quanto pilhas e baterias do celular. Expressões que nada têm de pessoal, que não permitem a descoberta ou o deslumbramento, estancam a circulação do afeto. Cessam o gosto de falar. Interrompem o gosto de ouvir.

Quantos fósseis são abandonados no cotidiano do idioma, quantos verbetes esperam sua chance de tratamento no aterro sanitário do dicionário? Será que não viramos fantasmas se portamos uma língua morta?

Poderíamos latir, poderíamos miar, poderíamos uivar, tudo isso é ainda comunicação. Mas falar não é somente comunicar, é se comprometer com a direção do timbre.

Palavras são de vidro. Palavras são de metal. Palavras são de plástico. Palavras são de papel. Não se pode colocar todas com o mesmo peso, no mesmo destino. É preciso discerni-las. Uma criança me entenderia.

Tolerância, por exemplo, é de vidro. Reboa por dentro. Faz volume antes de acabar. Não pode ser jogada fora, pois levará milhões de anos antes de virar pó.

Respeito, por sua vez, é de metal. Inteiriça. Difícil de quebrar. Fala-se de uma única vez como uma lâmina.

Condescendência é de papel, o acento vai lá no fim, suscetível aos rasgos da tesoura e das mãos ansiosas. Soletre, veja, imagine. Deite a voz, não fique de pé.

Assim como reciclamos o lixo, as palavras dependem da renovação. Mudar a ordem, produzir significação, exercitar gentilezas, valorizar detalhes. Não deixá-las paradas, desacompanhadas, viúvas.

Talvez seja daí minha incompetência em me desfazer do arranjo de rosas que recebo no aniversário de casamento. Desligo as pétalas do miolo e espalho as rosas nos livros. Fazem sombras para as frases.

É poluente dizer ao filho “nem se parece comigo” para ameaçá-lo. Uma convenção a que a maioria recorre para se livrar do cuidado, sacrificando um momento de particularizar sua experiência paterna e materna. Por que não procurar afirmar “você se parece comigo mesmo quando não se parece”?

Ou há algo mais solitário e desolador que resmungar “eu avisei” para sua mulher quando ela erra? Mostra que já a estava condenando antes de qualquer resultado e atitude. Em vez de cobrar, por que não compreender? Transformar o lixo hospitalar (sim, corta-se um braço dela com essa sentença) em adubo de frutas com a simples concisão de “a gente resolve”.

São períodos postiços, artificiais, fingidos, que corrompem a respiração. Ao encontrar um colega antigo, logo nos despedimos: “Vamos nos ligar?” Isso significa o contrário, não vou telefonar nos próximos três anos.

Até que ponto não se empregam palavras para se esconder o que se quer, para disfarçar, para ocultar? Quantos sinônimos para não dizer absolutamente nada. Para se afastar do que realmente se desejava declarar. Foge-se da palavra certa pela palavra aproximada. Uma
palavra vizinha não mora no mesmo lugar da verdade.

Palavra é sentimento. Mas – cuidado – as palavras não podem sentir sozinhas.

Palavra é poder. Ao esgotar seu significado, esgotamos nossa permanência.

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Seminário sobre Agroecologia

Em Porto Alegre (RS) de 20 a 22 de novembro de 2007

O VIII Seminário Internacional sobre Agroecologia e IX Seminário Estadual sobre Agroecologia tem como tema chave “Sociedade, ambiente e impactos: construindo caminhos” e está estruturado em quatro eixos temáticos: a) Impactos e tecnologia; b) Mudanças climáticas; c) Formação socioambiental; d) Agrobiodiversidade e cultura, além das tradicionais palestras de abertura e de encerramento.
Como nos eventos anteriores, o Enfoque Agroecológico é assumido como a aplicação dos princípios e conceitos da Ecologia no manejo e desenho de agroecossistemas sustentáveis, numa perspectiva de construção da agricultura sustentável e na elaboração de estratégias compatíveis com a promoção do desenvolvimento rural sustentável.
A Edição 2006 está confirmada para os dias 20 a 22 de novembro, no Auditório Dante Barone, Assembléia Legislativa, Porto Alegre (RS). Lembramos que as inscrições para participar do VIII Seminário Internacional sobre Agroecologia e IX Seminário Estadual sobre Agroecologia são gratuitas e podem ser efetuadas através de formulário on line disponível no site da EMATER/RS (www.emater.tche.br), entrando por “Áreas Técnicas”.
Outras informações podem ser obtidas também pelo telefone (0XX51) 2125 3100. Mais uma vez somos gratos pela divulgação dessa Segunda Convocatória, ao mesmo tempo em que seguimos à disposição pelos e-mails agroecologia2007@emater.tche.br e plantec@emater.tche.br

A Comissão Organizadora

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Consumo, logo existo

Frei Betto

Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse. O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc. A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população, nos submete ao consumo de símbolos. O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade.

Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável. É próprio do humano - e nisso também nos diferenciamos dos animais - manipular o alimento que ingere. A refeição exige preparo, criatividade, e a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico.A ingestão de alimentos por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido de arte. Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia: sentar à mesa coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos com esmero e, sobretudo, desfrutar da companhia de outros comensais. Trata-se de um ritual que possui rubricas indeléveis. Parece-me desumano comer de pé ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela.Marx já havia se dado conta do peso da geladeira. Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens. Portanto, em si o homem não tem valor para nós."

O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social. Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da exclusão.Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas, tem alma. Em comunidades tradicionais de África também se encontra essa interação matéria-espírito. Ora, se dizem a nós que um aborígene cultua uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de desdém. Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um determinado vinho guardado na adega, uma jóia?Assim como um objeto se associa a seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife. Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux. A roupa pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de um famoso estilista a gata borralheira transforma-se em Cinderela.Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder.

Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos. E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade.Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc. Comércio deriva de "com mercê", com troca.
Hoje as relações de consumo são desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas pessoas. Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia, criavam vínculos entre o vendedor e o comprador, e também constituíam o espaço das relações de vizinhança, como ainda ocorre na feira.

Agora o supermercado suprime a presença humana. Lá está a gôndola abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a frustração da falta de convívio é compensada pelo consumo supérfluo. "Nada poderia ser maior que a sedução" - diz Jean Baudrillard - "nem mesmo a ordem que a destrói." E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet. Sem sair da cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que deseja.

Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês, respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz".

Escrito por Frei Betto
Fonte: Adital