Dois sistemas públicos buscam integrar-se e atuar de forma articulada: O Sistema Nacional de Comércio Justo – SNCJ e o Sistema de Comercialização de Produtos da Agricultura Familiar e Economia Solidária – SECAFES.
A Agricultura Familiar Ecológica - AF e a Economia Solidária – ES trabalharam juntas por três dias, visando construir coletivamente outro tipo de comercialização.
Em Brasília, de 10 a 12 de dezembro de 2007, o Instituto Faces do Brasil , juntamente com dois ministérios, Desenvolvimento Agrário e Trabalho, através de suas secretarias, Secretaria do Desenvolvimento Territorial - SDT e Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES , o Fórum Brasileiro de Economia Solidária – FBES, mais a União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária – Unicafes e a Ecojus, reuniram-se com representantes de algumas das 25 experiências pioneiras de comercialização solidária, pesquisadas pelo Instituto Faces, além de outros grupos de economia solidária e agricultura familiar, para traçar as linhas gerais de uma política de Comércio Justo para o país.
Este Encontro foi um marco no que se refere à construção de uma cara brasileira para o comércio justo.
O que conhecemos hoje com esta denominação é a compra por paises "ricos" de produtos de países "pobres", visando contribuir com a superação das dificuldades enfrentadas pelos pequenos quanto ao acesso ao mercado consumidor. Outros referenciais, diferentes aos do mercado capitalista, orientam a transação, porém predomina a relação internacional.
Esse modelo de comércio é insuficiente e não plenamente satisfatório. O Encontro em Brasília inaugura um novo tempo. Buscou explicitamente avançar na construção de um modelo justo de comercialização baseado em transações dentro do país orientadas pelo desenvolvimento local e sustentável. O equilíbrio ambiental e social ganha centralidade, diferentemente do comércio ao qual estamos acostumados, que valoriza com absoluta prioridade o lucro.
Para isto, setores da sociedade civil e governo estão apresentando instrução normativa, que está para ser aprovada, mostrando os critérios a partir dos quais um empreendimento (da economia solidária ou da agricultura familiar) pode ser considerado do comércio justo. Isto envolve ainda a implantação de um selo, que dará legitimidade àqueles que estiverem de acordo com a lei.
O Mapeamento realizado pela Secretaria Nacional de Economia Solidária já identificou aproximadamente 22.000 empreendimentos solidários no território nacional, representando em torno de 2 milhões de trabalhadores.Verificou-se que 70% destes empreendimentos são da agricultura familiar. A agricultura familiar, é bom que se saiba, representa 85% da mão de obra no campo e produz 70% dos alimentos que os brasileiros consomem no dia-a-dia.
É Importante salientar alguns indicadores debatidos que permitem afirmar que uma determinada prática está dentro dos critérios do comércio justo. Do ponto de vista social e da gestão, destacamos aspectos que devem estar presentes em toda a cadeia produtiva, da produção à comercialização e ao consumo. A autogestão - administração coletiva e democrática do empreendimento - a transparência, preços justos, a ausência de exploração do trabalho, equilíbrio entre homens e mulheres, dentre outros.
Do ponto de vista ambiental, a preocupação com a recuperação e preservação da natureza, no campo e na cidade, é fundamental. Uma agricultura sem agrotóxicos e não transgênica. A preocupação com o lixo, buscando sua minimização, seja pela adoção de embalagens retornáveis, pela eliminação de sacolas plásticas e adoção de sacolas permanentes, como também pela busca de formas de reaproveitamento e de destinação à reciclagem.
Do ponto de vista do consumidor, o comércio justo propõe o acesso mais amplo possível à informação sobre a origem do produto, o que inclui quem o produz e o processo produtivo adotado.
O Encontro em Brasília foi também para socializar a pesquisa realizada pelo Instituto Faces do Brasil, com 25 experiências pioneiras em busca de uma comercialização solidária e justa. O objetivo era checar se os atributos acima descritos estavam presentes no seu cotidiano. Será que o que está sendo proposto como norma é realista? Acontece? O sentido maior da pesquisa é subsidiar a formulação de políticas públicas que apóiem e fomentem estes dois grandes setores da economia: a economia solidária e a agricultura familiar ecológica.
Foi constatado que em menor ou maior medida os grupos orientam-se por estes princípios, ainda que não de forma homogênea.
Um valor muito significativo para o comércio justo é a não exclusão, o que nos leva a pensar em processos de transição, que viabilizem a incorporação de atributos ainda não atingidos. Não somos perfeitos, mas o importante é a presença da intenção, da disposição para a mudança, do ponto de vista ambiental e social.
Importante ressaltar que vinculado à instrução normativa e ao selo, está se organizando outra forma de certificação, o Sistema Participativo de Garantia, que conta com a participação de produtores, técnicos e consumidores num processo autogestionário e onde os critérios acima especificados serão verificados. O valor desta proposta está na construção do conhecimento e confiança entre as partes, dispensando-se uma verificação externa paga, consequentemente inacessível para muitos e que apenas pontualmente está presente. Este sistema participativo de garantia (as bases participativas de garantia) está sendo construído pelos produtores e consumidores e deverá ter reconhecimento por lei.
A sociedade civil, presença majoritária no encontro sentiu-se apoiada pelo empenho dos setores do Governo presentes, que se propõem a implantar políticas públicas que propiciem esta outra forma de economia.
Um dos acordos realizados no Encontro foi o de buscar a priorização de produtos da agricultura familiar ecológica e da economia solidária nas compras públicas. Se imaginarmos o que isto significa, desde os cafezinhos, até a parte alimentar de cantinas, e muito especialmente a merenda escolar e o alimento em hospitais, presídios, etc., é muita coisa!
O avanço destas novas práticas de produção e de comercialização encontra enormes impedimentos, necessitando de apoio financeiro para investimento em transporte, espaço físico, administração, questões ligadas a logística e tantas outras.
A apresentação das experiências mostrou enorme riqueza e criatividade. Mencionaremos aqui apenas algumas, como o Projeto Esperança / Cooesperança, com a Irmã Lurdes conosco, nos contagiando com o seu entusiasmo e nos ensinando com a sua experiência. Organizadora, desde 1994 da Feira anual de Economia Solidária de Santa Maria (RS), desde então conseguiu enormes avanços. De feira municipal passou a ser uma feira solidária sul-americana e, da comercialização esporádica, o projeto deu um salto, implantando um conjunto de lojas solidárias, distribuídas na cidade, além de manter uma feira semanal, na qual é possível encontrar uma diversidade de produtos da agricultura familiar ecológica e de grupos urbanos da economia solidária.
A Rede Xique Xique (RN) representada pela Neneide, mostrando como no longínquo sertão nordestino, especialmente mulheres se organizaram em toda a cadeia produtiva, elaborando sua carta de princípios, com ênfase à questão feminina e construindo espaços de comercialização que estão em várias cidades do estado, através de feiras, pontos de venda, tanto para alimentos quanto para o artesanato. Conseguiram organizar-se a ponto de tornarem-se uma base de certificação participativa. Trabalham muito com a questão educacional, pelos direitos das mulheres, contra os transgênicos e em busca da soberania alimentar.
A Central de Comercialização da Economia Solidária do Mato Grosso do Sul , representada por Tiana, com uma loja, espaço cedido pelo governo do Estado, onde comercializam tanto alimentos quanto artesanato. O grupo administra coletivamente o espaço e suas necessidades, com formação e difusão das propostas da economia solidária.
A APAT, com Derli, brilhou: organização articulada por produtores da região da Mata, de Minas Gerais, que conseguiu o controle sobre toda a cadeia produtiva com uma produção diversificada que envolve as cadeias do leite, cana e café, trabalhando com a homeopatia, caldas, etc. Na ponta da comercialização, organizaram um mercado de seus produtos na cidade de Tombos, que significa um canal de escoamento cotidiano para os produtores, e um espaço de compra para o que lhes falta. Participam do Programa de Aquisição de Alimentos da Conab, abastecendo 5 cidades, além de hospitais, presídios,etc.
A Adao, Grupo de Produtores e Consumidores, que trabalha com cestas fixas, pagamento antecipado dos insumos e necessidades da produção, em Goiás. Também trabalham sobre a certificação, estruturando-se como base de certificação participativa.
Mais uma vez comprova-se o quanto a organização dos consumidores ainda é pouco debatida, apesar de sua importância crucial. Em que pese o consumidor ser o grande financiador de toda a cadeia da economia solidária e da agricultura familiar ecológica, o debate avança com força apenas até a etapa da comercialização. A construção de estratégias relacionadas à mobilização e a articulação de consumidores conscientes ou solidários ainda é muito incipiente.
Éramos apenas três grupos organizados a partir de consumidores. Dentre elas, a GiraSol, Cooperativa de Comércio Justo e Consumo Consciente, uma experiência recente desenvolvida em Porto Alegre (RS). A GiraSol organiza-se a partir de um grupo de sócios voluntários que articula produtores da economia solidária e da agricultura familiar ecológica e sensibiliza consumidores, na perspectiva permanente da constituição e ampliação de uma Rede de Consumidores que se disponham a questionar o seu padrão de consumo, adotando outros hábitos, orientados pela lógica da sustentabilidade. A venda dos produtos é feita quinzenalmente, através de sua página na internet e a entrega na sua Sede, oportunidade em que rola um bom chimarrão e a degustação de novos produtos. Quando o consumidor não dispõe de tempo para buscar a compra, a GiraSol providencia a entrega.
O Movimento de Integração Campo-Cidade (MICC), uma articulação entre grupos de consumidores da cidade de São Paulo e assentados do Estado (Ibiúna e Peró) há mais de 10 anos garante, através de cestas fixas, uma renda previsível para os produtores. Movimento ligado à Igreja, conta quase totalmente com trabalho voluntário para a logística da entrega para a cidade e mantém também uma loja solidária. Fazem um trabalho formativo para compreender a reforma agrária, a economia solidária e a soberania alimentar.
A Rede Ecológica, Campo e Cidade se dando as mãos, no Rio de Janeiro, calcada em compras coletivas semanais (em 4 núcleos) e mensais (3). Nas compras mensais são trazidos produtos variados de diferentes partes do país, possibilitando uma alimentação predominantemente agroecológica. As compras são feitas através de encomendas (especialmente por internet), entregues em espaços comunitários (escolas, igrejas, associação de moradores). A gestão é realizada por consumidores voluntários, contando ainda com um grupo pago para tarefas de infra-estrutura. Busca-se maior conscientização dos consumidores, através da comunicação internáutica, de encontros e da prática constante de um outro tipo de consumo.
Pela aproximação e diálogo com os dois atores – produtores e consumidores – as três iniciativas de consumidores descritas, perseguem a re-significação na sociedade do ato cotidiano de consumir – perceber que atrás de um produto há uma cadeia de valores oculta que pode ser social e ambientalmente positiva ou negativa - e a partir daí orientar a escolha.
Ainda há muito que ser feito, mas, a integração iniciada promete avanços para esta nova proposta. A comercialização e o consumo ainda se dão de forma muito segmentadas, mas esta iniciativa certamente agilizará processos e tornará a nossa caminhada mais leve.
O Encontro já foi um testemunho disso. O reunir-se com os diferentes atores, de várias partes do país foi um dos pontos altos. Passou por dançar/cantar ciranda, trocar experiências, abraços, sentimentos e produtos. E um fruto concreto desta troca, é este texto escrito a quatro mãos, no aeroporto Juscelino Kubitschek em Brasília, aguardando nossos respectivos vôos.
Fazer um relato sobre o vivido, uma atividade em geral pesada, tornou-se prazeroso, provando que o encontro verdadeiro entre pessoas é sempre promissor e pode revelar preciosas formas de viver.
A Rede Ecológica e a GiraSol, já experimentaram o sabor de novas possibilidades. Perspectivas se abrem para nós do ponto de vista da troca de produtos e da construção coletiva de metodologias e de processos que auxiliem no fortalecimento da pauta do consumo.
Muita formação, reflexão e educação ainda são necessárias para a disseminação de novas práticas que contribuam para a construção de uma sociedade mais justa e solidária.
E também políticas públicas que apóiem iniciativas fomentadoras.
*Iara Borges Aragonez, representante da Cooperativa GiraSol, Porto Alegre/RS e do Coletivo Desenvolvimento Sustentável do SEMAPI Sindicato.
**Miriam Langenbach, representante da Rede Ecológica, Rio de Janeiro/RJ
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