domingo, 27 de janeiro de 2008
Gerenciamento Integrado de Resíduos Sólidos: A Coleta Seletiva e Seus Desafios. Reflexões a partir de uma experiência local
Texto abaixo de
Arnaldo Luiz Dutra e Geraldo Antônio Reichert
Nos últimos anos o conceito de gerenciamento integrado tem sido proposto como alternativa para a inversão da triste realidade do manejo dos resíduos sólidos urbanos no Brasil. Mas o que é gerenciamento integrado? Será que cada vez que usamos, lemos ou escutamos este termo temos todos o mesmo entendimento de seu significado? Nem sempre, pois mesmo algumas definições que têm sido propostas na bibliografia apre-sentam divergências. Talvez a definição que melhor resuma o que é gerenciamento integrado de resíduos sólidos urbanos seja aquela adotada por McDougall et al. (2001): o sistema de gerenciamento integrado engloba todo o fluxo de resíduos, os métodos de coleta, de tratamento e de destinação final, com o objetivo de alcançar benefí-cios ambientais, otimização econômica e aceitabilidade social (ou participação popular). Isto conduzirá a um sistema conveniente e sustentável de gerenciamento de resíduos para cada cidade ou região específicas.
Do ponto de vista do cidadão comum, o método mais conveniente de coleta provavelmente seja aquele que colete todos os resíduos misturados, tanto no que se refere ao tempo quanto ao espaço necessários. Este método limita, no entanto, as opções de tratamento subseqüente. A maioria dos métodos de tratamento requer uma segregação prévia na fonte em diferentes frações, dentro das casas, antes da coleta. A esta coleta de materiais previamente segregados é que chamamos de coleta seletiva.
A cidade de Porto Alegre, com cerca de 1,4 milhão de habitantes, conta com um programa de cole-ta seletiva desde 07 de julho de 1990. Contando hoje com a colaboração de parcela significativa da população porto-alegrense, que separa seus resíduos na fonte, ou seja, em suas casas, nestes 15 anos de coleta seletiva em Porto Alegre já foram recicladas cerca de 40 mil toneladas de papel, o que corresponde a 1,4 milhão de árvores que deixaram de ser derrubadas. Podemos dizer, portanto, que neste período, cada cidadão do município poupou exatamente uma árvore (1.400 mil habitantes). Além disso, temos ainda como benefícios diretos uma economia de 10 % do volume ocupado nos aterros sanitários (o que eqüivale a duração de mais 15 meses de vida útil dos aterros); e a geração de cerca de 600 postos de trabalho fixos e diretos nas Unidades de Triagem de Resíduos. Além disso estima-se que a economia de energia proporcionada pela reciclagem, somente de alumínio e papel, neste período seja de 9 milhões kWh, o que é suficiente para manter o consumo de energia elétrica de 5.000 residências (20 mil habitantes) por um período de um ano.
A educação ambiental é ferramenta, porque é através dela que se busca a conscientização das pes-soas para que façam a efetiva separação de seus resíduos em suas residências; e é produto porque ao fazerem esta segregação em suas casas ou escritórios, as pessoas entram em um processo de “dar-se conta” de toda a dinâmica de geração e tratamento dos resíduos. É portanto um processo que é continuamente retroalimentado, o que é aliás característica intrínseca de um “sistema”.
É sabido que soluções sozinhas e estanques não conseguem resolver os problemas no gerencia-mento de resíduos sólidos. As alternativas devem ser vistas e concebidas com uma visão sistêmica, sempre como sendo parte da solução, e não a solução. A coleta seletiva é apresentada como uma das alternativas de grande impacto. Solução que obrigatoriamente é precedida da educação ambiental e sócio - ambiental, devido a potencialidade de geração de renda, e vem acompanhada de unidades de triagem dos materiais, centrais de comercialização, reaproveitamento e reciclagem propriamente ditas, não fugindo da necessidade de unidade de destinação final para aquela fração não reciclável.
A coleta seletiva, agregada às unidade de triagem de resíduos, teve seu crescimento no Brasil mais acentuado na década de 1990. Quando estas alternativas são concebidas como sendo partes integrantes de um sistema integrado, são com certeza elementos fundamentais na definição de modelos sustentáveis de gerencia-mento de resíduos. Os benefícios também são visíveis, como atestam os números e os resultados já apresentados anteriormente para o município de Porto Alegre.
Mas, parafraseando livremente o poeta, nem tudo são frutos nem flores. Todos as cidades brasilei-ras, independentemente do seu tamanho ou do grau de desenvolvimento econômico, estão atualmente sendo desafiadas a resolver a questão da coleta informal, isto é, aquela coleta que é feita por catadores de rua por meio de carrinhos de tração humana (os carrinheiros), por carroças de tração animal (os carroceiros), por veículos automotores adaptados, e até mesmo por pessoas de bicicleta, a pé e empurrando os carrinhos de supermercado. Estima-se que em Porto Alegre o número de catadores informais de rua tenha subido de cerca 1,5 mil a algo em torno de 5 ou 6 mil nos últimos 4 anos. Este fenômeno deve-se a dois fatores preponderantes: a forte crise econômica de um lado, que mantém excluídos do mercado de trabalho milhões de brasileiros; e de outro lado a disponibilização de renda junto ao meio-fio. Sim, porque é isto que estamos fazendo quando separamos os resí-duos em nossas residências e os apresentamos à coleta seletiva. Como nos dizia, em recente debate em um pro-grama de rádio local, uma ex-catadora que catava na rua para poder pagar seu curso numa universidade privada (ela faz Serviço Social): “quando eu vejo um latinha ou papel na rua, eu não vejo outra coisa senão moedas.”
Cabe ao poder público, e toda a sociedade, dar resposta a esta grave questão de milhares de pesso-as que sobrevivem destas atividades informais. Esta coleta informal, nos moldes em que ela vem sendo feita na maioria das cidades brasileiras, acaba trazendo uma séries de conflitos com o sistema de limpeza urbana oficial – uma vez que muitas vezes os resíduos são triados em plena via pública, resultando em prejuízos à limpeza pública – e com as associações de catadores formais estabelecidas nas Unidades de Triagem – uma vez que há uma competição pelo material disponível, competição esta muitas vezes “desleal”, pois os catadores de rua acabam retirando os materiais mais nobres, o que resulta em queda de rendimentos financeiros para as associações esta-belecidas. Além disso, pode representar inconvenientes sanitários, pois os locais onde é feito o armazenamento, beneficiamento e comercialização dos materiais coletados geralmente apresentam condições de salubridade longe do desejável.
A política de resíduos sólidos a ser implementada pelos município deve levar em conta esta reali-dade. Entretanto, não cremos que a forma mais inteligente de procurar resolver o problema seja incentivando esta catação informal, ou querer que os catadores de rua assumam a coleta seletiva. Os catadores devem ser con-siderados parte integrante na definição do sistema integrado de gerenciamento. Tanto na fase de definição, quanto na fase de implementação (implantação e operacionalização). Mas no nosso ponto de vista, o sistema deve ser concebido para que a catação de rua, ou a coleta informal, seja gradativamente abandonada, substituída e desnecessária.
Talvez nesta questão, de catadores e do incentivo à coleta informal, resida uma das maiores contradições no que tange ao gerenciamento de resíduos sólidos. Focamos o problema e não a solução. Esta questão de foco nos faz lembrar de uma historinha: “Quando a Nasa iniciou o programa de lançamento de foguetes tripu-lados nas décadas de 1960, descobriram que as canetas não funcionariam com gravidade zero. Para resolver este enorme problema, contrataram uma grande empresa de consultoria. Empregaram uma década de pesquisa e 12 milhões de dólares. Conseguiram desenvolver uma caneta que escrevesse com gravidade zero, de ponta cabeça, debaixo d'água, em praticamente qualquer superfície incluindo cristal e em variações de temperatura desde abai-xo de zero até mais de 300 graus Celsius. Os russos, por sua vez, usaram um lápis...”
É senso comum que a política dos 3 R´s (Reduzir, Reaproveitar, Reciclar) deva estar presente em qualquer modelo. A hierarquização das ações prioritárias num sistema integrado, diz que primeiro devemos reduzir a geração dos resíduos; depois, o que não for possível evitar que seja gerado, devemos reaproveitar; somente depois é que vem a reciclagem (e aí esta subentendido tanto a reciclagem dos materiais ditos “secos” como a reciclagem da matéria orgânica). Na seqüência hierárquica ainda vem o tratamento térmico e o aterro sanitário. No Brasil, ocorre uma inversão de prioridades: a reciclagem tem sido muito incentivada – e isto é bom –, mas o primeiro R tem sido completamente esquecido – e isto não é nada bom. É aí, nesta inversão de prioridades, que está a contradição.
Deveríamos estar focando nossos principais esforços em políticas, projetos e atividades de não geração de resíduos; sendo as demais atividades – reaproveitamento/reciclagem, tratamento e destinação final – complementares. Qual é o problema afinal? Uma boa tentativa de resposta a esta pergunta é dizer que o proble-ma é a geração de resíduos. São os resíduos que causam os impactos ambientais quando tratados e dispostos de forma inadequada, ou mesmo quando o são de forma adequada (é por isso que fazemos os estudos de impacto ambiental para unidade de compostagem ou aterros sanitários, para identificar, quantificar e mitigar estes impac-tos). Ora, se os resíduos são o problema, não é focando-os que vamos resolver o problema, mas sim focando a solução, qual seja, a sua não geração.
A contradição está também na própria visão que os catadores têm do problema: para eles quanto mais resíduos, melhor, pois mais rendimentos eles conseguem. Contradição esta que também tem sido explorada por aqueles que teriam um papel fundamental na minimização da geração dos resíduos: os fabricantes de emba-lagens e os que as utilizam para vender seus produtos. Vejamos um exemplo muito ilustrativo disto. Há um tem-po atrás, um fabricante de envases para bebidas patrocinava campanhas e gincanas em colégios de educação fundamental e de ensino médio, onde as crianças ou adolescentes eram incentivados a levar para a escola estes envases vazios. Em troca, as turmas que conseguiam juntar o maior volume destes materiais, recebiam presentes, como computadores ou outros equipamentos. Num primeiro olhar parece uma troca vantajosa – assim como pareceu vantajosa aos indígenas, 500 anos atrás, a troca de seu ouro por espelhos e quilharias –, no entanto este tipo de campanha elevou em muito o consumo das bebidas envasadas no referido material no bar daquele colégio. O mesmo vale para outros materiais, por exemplo, o caso em que crianças levaram para campanhas de reci-clagem feitas no colégio maços fechados de papel para impressão. Isto pode ser tudo, menos campanha de educação ambiental ou correto gerenciamento de resíduos.
Por fim, é importante não nos esquecermos, quando falamos de coleta seletiva e de reciclagem, da fração orgânica. Matéria orgânica representa em média de 50 a 60% em peso dos resíduos sólidos domiciliares no Brasil. Estima-se que a fração recuperada, através do processo conhecido como compostagem, é menor que 1%. O investimento em compostagem merece um olhar mais cuidadoso, pois é capaz de desviar do aterro sanitá-rio um percentual de 2 a 3 vezes maior que a reciclagem dos outros materiais. Juntos, reciclagem de materiais (ditos “secos”) e orgânicos, podem desviar em torno de 75% do aterro, ou seja, sobrariam os cerca de 25% que representam os rejeitos sem possibilidade de utilização.
Certamente não conseguiremos atingir a geração zero de resíduos num curto espaço de tempo (tal-vez nem num médio). Enquanto isto, devemos adotar todas as possibilidades dentro da hierarquia de ações pos-síveis. Nestas etapas, os catadores não podem ser simplesmente esquecidos ou excluídos. Mas, achamos que este deva ser um processo de transição, em que novas alternativas sejam buscadas, e que cada vez menos resíduos sejam gerados.
Não vislumbramos um futuro onde o homem esteja puxando um carrinho para poder sustentar sua família, nem um futuro onde o homem explore outros homens que fazem a coleta informal de resíduos pelas ruas das nossas cidades.
Nós cremos num futuro de cidadania plena... Nos permitamos a todos esta utopia!
Bibliografia citada:
McDougall, F.; White, P.; Franke, M; Hindle, P. 2001. Integrated solid waste management: a life cycle inventory. Blackwell Science: Oxford. 513p.
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