domingo, 30 de março de 2008

A Economia Solidária e os Novos Paradigmas de Desenvolvimento: sustentabilidade, solidariedade e territorialidade.

Roberto Marinho Alves da Silva

Se o desenvolvimento funda-se na realização das capacidades humanas, é natural que se empreste a esta idéia um sentido positivo. As sociedades são desenvolvidas na medida em que nelas mais cabalmente o homem logra satisfazer suas necessidades e renovar suas aspirações (Celso Furtado, 1980)

Desvios do Desenvolvimento ou a Encruzilhada Civilizatória
Com o advento das sociedades modernas, o desenvolvimento tem sido relacionado à sua dimensão econômica (produção de riquezas), tendo por base o progresso técnico-científico e o consumo de bens, como medida. Mesmo com o acréscimo dos aspectos social e humano à concepção de desenvolvimento, o crescimento econômico continuou subordinando o bem estar social e a qualidade de vida humana.

Trata-se, de um paradigma civilizatório que vem sendo utilizado para justificar o sacrifício das classes trabalhadoras e dos recursos naturais. O que confere o status de modernidade são o acesso e uso dos mais avançados produtos da economia e à tecnologia necessária para fabricá-los. Essa busca do progresso torna-se um objetivo utilitarista que mobiliza as sociedades, sobrepondo a economia a outros valores e finalidades da vida humana. A modernidade técnica é um modo de vida que impõe um padrão consumista predador da natureza e de vidas humanas em beneficio de minorias privilegiadas: “Na modernidade-técnica, o avanço técnico define a racionalidade econômica, subordinando a ela os objetivos sociais e ignorando os valores éticos”. (Buarque, 2001: 224)

Nas três últimas décadas um conjunto de mudanças na ordem econômica e política mundial fortaleceu ainda mais esse modelo. As transformações tecnológicas sob o controle do capital financeiro contribuíram para desvalorização do trabalho, ampliando a exclusão social pela via do desemprego duradouro e em massa. A hegemonia do pensamento neoliberal incidiu negativamente nas capacidades nacionais de promoção do desenvolvimento, aumentando a dependência dos países periféricos ao capital transnacional, com implicações diretas no processo de destituição de direitos sociais em nome da lógica do mercado.

A forma como o Brasil se inseriu nesse processo, priorizando a integração competitiva de forma subordinada aos interesses do capital transnacional, tendo por base políticas econômicas direcionadas ao ajuste fiscal e à estabilidade monetária, conduziu ao sucateamento do Estado e ao desmonte de políticas públicas. Esse processo de globalização neoliberal aprofundou as desigualdades e aumentou a exclusão social.

Em pleno século XXI, a fome continua como um dos graves problemas da estrutura e do modelo socioeconômico do país. Tendo por base dados da PNAD de 2001, é possível identificar que 9,3 milhões de famílias ou 44 milhões de pessoas (27,3% da população total do país), com renda abaixo de US$ 1,00 por dia, não têm condições de garantir a segurança alimentar. As desigualdades geram uma situação de apartação social, onde uma minoria privilegiada vive cada vez mais acuada diante do aumento generalizado da violência e da insegurança.

A falta de alternativa de emprego e os baixos salários são os principais fatores de exclusão e de violência. A sangria dos recursos nacionais para o pagamento das dívidas externa e interna tem impacto significativo na redução dos investimentos sociais e de infra-estrutura, reduzindo significativamente a capacidade do Estado em reverter esse quadro.

Além da exclusão social de milhares de seres humanos, o atual modelo de desenvolvimento gera desequilíbrios ambientais de conseqüências ainda não plenamente calculadas. A miopia ecológica soma-se à ganância empresarial para produzir as ameaças eminentes de esgotamento de recursos naturais, colocando em risco o futuro de milhões de espécies vivas terrestres. A produção e o consumo se aceleram em ritmo febril criando um ambiente onde a vida tornou-se física e mentalmente doentia.
Essas numerosas manifestações da crise indicam que se trata de uma crise civilizatória, uma crise complexa, onde os problemas são sistêmicos. A humanidade encontra-se numa encruzilhada civilizatória, frustrada com a noção moderna de desenvolvimento econômico: “O estilo de vida criado pelo capitalismo industrial sempre será o privilégio de uma minoria. O custo em termos de depredação do mundo físico, desse estilo de vida é de tal forma elevado que toda tentativa de generalizá-lo levaria inexoravelmente ao colapso de toda uma civilização, pondo em risco a sobrevivência da espécie humana” (Furtado, 1974: 75).

Novos Paradigmas: sustentabilidade e solidariedade
A proposta de um projeto alternativo para a sociedade surge da crítica a um modelo de desenvolvimento que produz riquezas gerando miséria e depredando o meio ambiente, colocando em risco o futuro da vida na terra e a crescente exclusão social de bilhões de pessoas. A problemática do desenvolvimento tem provocado o surgimento de vários movimentos de tomada de consciência dos impactos ambientais. O avanço recente da consciência ecológica diante de análises de desastres ambientais conduz a uma articulação de grupos e movimentos que passam a questionar o uso insustentável dos recursos naturais não renováveis. A incorporação da questão ambiental resultou na proposta do desenvolvimento sustentável que estabelece novas relações de equilíbrio entre as dimensões econômica, social e ambiental.

Esses movimentos procuram alternativas de desenvolvimento que permitam satisfazer, de forma adequada, as necessidades e aspirações das populações presentes (solidariedade sincrônica) sem comprometer o bem–estar das gerações futuras (solidariedade diacrônica). A harmonização das necessidades básicas da humanidade com as capacidades limitadas dos recursos da natureza seria, conforme Sachs (2000, p. 29), o ideal de “uma nova forma de civilização, fundamentada no aproveitamento sustentável dos recursos naturais”.

A compreensão do desenvolvimento sustentável começou a ser construída na Conferência de Estocolmo (1972) e no Simpósio de Cocoyok (1974). Esses eventos tiveram grandes méritos: a identificação de relações intrínsecas entre meio ambiente e desenvolvimento; os avanços conceituais que enfrentaram os reducionismos; e a formulação de estratégias para a promoção de um “desenvolvimento sócio-econômico eqüitativo, ou ecodesenvolvimento” (Sachs, 1993, p. 30).

Para além do movimento ambientalista, existe hoje um quase consenso em torno da necessidade de um novo modelo de desenvolvimento dotado de sustentabilidade. Ocorrem avanços na recuperação de uma visão holística sobre a relação entre o meio ambiente natural e os seus habitantes, superando a visão antropocêntrica que justifica a exploração ilimitada e a depredação do meio ambiente, e avança na construção de postulados de sustentabilidade.

Não se trata apenas de mudanças nas concepções de desenvolvimento, mas da emergência de um novo paradigma. São novos conceitos, idéias e percepções que tendem a orientar os processos de desenvolvimento: “uma mudança profunda no pensamento, percepções e valores que formam uma determinada visão da realidade” (Capra, 1999, p. 29). Essas mudanças na visão de mundo expressam a passagem da concepção mecanicista para uma visão holística e ecológica. Rompem com a visão antropocêntrica, proporcionando a reconciliação do homem com a natureza. A inter-relação e a interdependência são elementos essenciais em todos os fenômenos físicos, biológicos, culturais e sociais.
Já o paradigma da solidariedade do desenvolvimento baseia-se numa ética onde é bom tudo o que nos ajuda a compartilhar os dons da natureza e os bens socialmente produzidos com vistas à realização de todas as pessoas. Todos e todas somos co-responsáveis para cuidar desses bens para que frutifiquem e beneficiem a todos/as em iguais condições. Isso exige uma nova relação humana em que o individual não sufoque o coletivo e ambas as dimensões se fortaleçam reciprocamente, numa dinâmica cumulativa. Percebe-se a quase impossibilidade de que esses postulados sejam plenamente exercidos pela ótica capitalista.

A lógica da solidariedade e da sustentabilidade do desenvolvimento implica na humanização de todas as relações sociais e uma integração orgânica do ser humano com a natureza. Passa pela formação de laços sociais de solidariedade, nos quais o significado da cidadania vai do grau mínimo de satisfação das necessidades básicas - condição para a participação cidadã – até a realização completa dos humanos-seres-solidários. Acreditamos ser esse o caminho para chegarmos à verdadeira democracia que exige a superação de todas as formas de discriminação e dominação: de classe, de raça e de gênero.

Percebe-se a necessidade e possibilidade de desenvolver a sustentabilidade no sentido de valorizar a tecnologia para que possa estar a serviço de uma organização solidária de sociedade. Para isso é fundamental integrar a dimensão ecológica em todas as dimensões da ação humana. A solidariedade estará plenamente expressa na satisfação das necessidades básicas de todos sem continuar destruindo a vida em nosso planeta.

O Lócus do Desenvolvimento: novas visões de territorialidade
Outra característica contemporânea da busca de um novo modelo de desenvolvimento é a sua relação direta com a realidade local. O reordenamento espacial é certamente um dos fenômenos políticos que marcam a contemporaneidade. O que se convenciona chamar de globalização, como ampliação do espaço econômico internacional, além de ter referência na formação de blocos continentais e num processo de crise do Estado-Nação, tem sido acompanhada de uma relativa revalorização de espaços locais. A economia local ganha importância como alternativa diante da crise do trabalho nos centros urbanos industrializados.

Esta ressignificação do local vem acompanhada do resgate de utopias humanizadoras do desenvolvimento, na perspectiva de que os espaços locais possam oportunizar a sociedade a retomada das rédeas do seu desenvolvimento, com base em práticas cada vez mais democráticas e solidárias. O poder local é visto para além do governo e das elites dominantes e incorpora as forças sociais nos processos decisórios (Dowbor, 1994).

Do ponto de vista cultural, a “volta ao local” é uma manifestação de valorização da diversidade cultural, da recomposição e afirmação de identidades e territórios, como propõe Hassan Zaoual (2003, p. 95), com o conceito de sítio simbólico de pertencimento: um espaço de crenças e práticas ajustado às circunstâncias locais. Sua transversalidade articula a cultura dos atores da situação, com a sociedade e o meio ambiente. Contrariamente à exclusiva visão de mercado que subtrai o homem do seu ambiente social, o sítio o inclui e o vincula a suas raízes, dando sentido aos seus comportamentos.

Uma síntese do enfoque territorial do desenvolvimento pode ser encontrada na apresentação da recém-criada Secretaria de Desenvolvimento Territorial, no Ministério do Desenvolvimento Agrário: “uma visão essencialmente integradora de espaços, atores sociais, agentes, mercados e políticas públicas de intervenção, e tem na eqüidade, no respeito à diversidade, na solidariedade, na justiça social, no sentimento de pertencimento cultural e na inclusão social, metas fundamentais a serem atingidas e conquistadas” .

A valorização e legitimação do local têm pelo menos três motivações políticas básicas:
a) A descentralização de responsabilidades e de políticas como uma forma de enfrentamento da crise do Estado, enquanto estratégia localizante de regulação da ordem social. É nesse sentido que o desenvolvimento local ganha destaque no plano internacional a partir das agências de desenvolvimento (BIRD, Banco Mundial, órgãos das Nações Unidas etc.).
b) Os avanços nas teorias de desenvolvimento local, contrapondo-se ao desenvolvimento pelo alto, surgem como resposta acadêmica às crises econômicas da década de 1970 em nível mundial (motivação acadêmica e técnica na área de planejamento).
c) Os interesses das forças de centro-esquerda no processo de reorganização da sociedade política com a ativação da municipalização (proximidade e imbricamento entre cidadão, sociedade organizada e poder público). No Brasil, as experiências de gestão municipal popular e democrática e a Constituição de 1988 refletem as propostas democráticas participativas que viabilizem a implantação de políticas locais, como forma de aprofundar seus vínculos com a sociedade.

No entanto, o local não é um espaço autônomo que possa ter um processo autóctone de desenvolvimento tendo em vista a existência e preponderância dos problemas e potencialidades externas. É constatado que os municípios periféricos ao desenvolvimento capitalista (menos industrializados) são fortemente dependentes dos repasses de recursos dos níveis estadual e federal, cujo desenvolvimento não pode ser concebido de forma autônoma ou ao sabor dos interesses e da lógica do mercado. A estratégia locacional dos investimentos privados pode conduzir, segundo Tânia Bacelar (1997:287), à (re)concentração das atividades econômicas com base na seletividade dos investimentos em alguns focos de dinamismo, promovendo a “desintegração competitiva”. Faz-se necessário, portanto, a combinação do local com políticas de integração nacional e de desenvolvimento regional, evitando a “guerra fiscal” entre estados e municípios.

A globalização dos mercados, no entanto, não elimina as alternativas locais, pois as possibilidades de desenvolvimento continuam sendo endógenas e requerem a mobilização de forças locais para empreendê-la. Ao mesmo tempo em que há uma concentração no acesso ao mercado globalizado com o acirramento da competitividade com base na melhoria dos padrões produtivos em benefício de grandes grupos econômicos mundiais, colocando em crise setores econômicos tradicionais, são abertas algumas brechas para produtos e serviços no nível local. Isto é, ao buscar saídas de minimização dos efeitos da globalização, são valorizadas as especificidades e potencialidades locais, na busca do “que sabe fazer melhor”, do “que é bom e atrativo”, implicando na valorização de novos fatores de produção e impulsionando o núcleo criativo da economia.

Considerando esse debate sobre as potencialidades e limites, o desenvolvimento local ou endógeno tem uma série de características próprias que devem ser conhecidas para compreensão adequada de seus limites e potencialidade, evitando que se transforme numa panacéia sem nenhuma base crítica.

O desenvolvimento local é uma forma de valorizar as potencialidades locais (econômicas, humanas, ambientais) para proporcionar o crescimento econômico, a melhoria das condições de vida da população e o fortalecimento da cidadania, conforme a definição de Sérgio Cristovam Buarque (1997): “O desenvolvimento local é um processo endógeno de mobilização das energias sociais na implementação de mudanças que elevam as oportunidades sociais e as condições de vida no plano local (comunitário, municipal ou sub-regional), com base nas potencialidades e no envolvimento da sociedade nos processos decisórios.”

Para alcançar esses objetivos, o desenvolvimento local requer políticas públicas inovadoras formuladas com base nos seguintes princípios:
1 – A reorientação das prioridades:
• Econômicas: aproveitamento das potencialidades locais para criar oportunidades econômicas através de investimentos e reestruturação da base produtiva e da capacitação humana.
• Sociais: melhoria da qualidade de vida através da geração de trabalho e renda e do acesso aos serviços sociais básicos com qualidade;
• Ambientais: manejo sustentável dos recursos naturais com a adaptação e incorporação de tecnologias adequadas, de modo que as atividades produtivas não comprometam o meio-ambiente;

2 – A construção de novas formas de relação entre Estado e sociedade:
• Fortalecimento das capacidades locais, através da descentralização administrativa (planejamento e gestão das ações) e financeira (recursos para promover as ações de desenvolvimento) para o âmbito local;
• Democratização do poder com a criação de mecanismos de participação direta da sociedade civil na gestão de políticas públicas;
• Mobilização das diversas forças sociais, econômicas e políticas locais em torno de objetivos que são comuns;

3 – A integração das ações:
• Integração dos vários setores de desenvolvimento, articulando a dimensão econômica com a social, ambiental e cultural;
• Articulação e Parceria dos diversos órgãos e entidades governamentais (diversas esferas: municipal, estadual e federal) e da sociedade civil em torno da complementaridade de ações e objetivos específicos, evitando a fragmentação das ações.

Apesar de ser uma proposta inovadora, verifica-se a existência de diversas barreiras que têm limitado as tentativas de implementação das propostas de desenvolvimento local. Entre estes limites destacam-se: insuficiência na capacidade organizativa da sociedade civil local para garantir o funcionamento dos mecanismos de gestão participativa; manutenção e reprodução de práticas políticas tradicionais na gestão de bens públicos; limitação do acesso a recursos para implementação das ações previstas; e o imediatismo e fragmentação na execução das ações e nos modelos tradicionais de gestão pública centralizada no poder executivo, com pouco envolvimento da população e suas organizações.

Diante dessas dificuldades, a capacitação da população e o fortalecimento das organizações da sociedade civil, tornam-se elementos fundamentais para o sucesso das iniciativas de desenvolvimento local. Isso porque, os três pilares de sustentação do desenvolvimento local são: a participação cidadã, a cooperação ativa e a capacitação integral dos sujeitos sociais.
• A participação cidadã garantida e incentivada em todos os momentos: desde o planejamento das ações locais de desenvolvimento, até na sua implementação e controle, através de diversos mecanismos de participação social: comitês, comissões, conselhos de gestão de políticas, conselhos de desenvolvimento, fóruns, congressos, consulta popular, etc.
• A mobilização e cooperação ativa (crítica) da sociedade e entre os órgãos públicos possibilitam a integração dos esforços e ações, refletindo o comprometimento da população local e das organizações públicas e privadas com os objetivos do desenvolvimento local.
• A Capacitação ético-política Para a cooperação e a participação: A capacitação ético-política deve proporcionar a descoberta e a vivência de valores democráticos, da justiça social, da autonomia e da cooperação solidária, fazendo prevalecer a busca dos objetivos coletivos, contribuindo para a superação do imediatismo e do individualismo que estão na base da má utilização e desvio dos recursos.

Os dois primeiros pilares não se sustentam se não houver um processo de capacitação integral das pessoas. Em especial, a capacitação ético-política deve contribuir para a constituição dos sujeitos do desenvolvimento, isto é, pessoas e organizações com capacidade de sensibilizar, mobilizar, organizar, representar interesses e animar os diversos processos de planejamento e execução das ações do desenvolvimento local. Esses sujeitos devem ser capazes também do exercício político da participação nos diversos mecanismos institucionalizados de gestão de políticas públicas (conselhos, comissões, fóruns, etc.), atuando de forma autônoma diante das tentativas de manipulação e de cooptação política que sempre estão presentes nesses espaços. Um terceiro aspecto da capacitação ético-política diz respeito à necessidade de conhecimento dos instrumentos administrativos, jurídicos e legislativos de apoio à participação cidadã no desenvolvimento local. A maioria desses instrumentos foi criada pela Constituição Brasileira de 1988. Destaca-se também o conhecimento da lei orgânica do município e da legislação e normas operacionais das políticas e programas públicos e dos conselhos de gestão.

A construção dos pilares de sustentação do desenvolvimento local exige paciência, investimento e vontade política. Significa abrir um novo caminho de conceber e construir de forma solidária o desenvolvimento num ambiente em que a cultura e as práticas predominantes funcionam no sentido contrário à participação e à integração. É um aprendizado conjunto de como combinar as políticas públicas com as necessidades e potencialidades locais.

Economia Solidária, Desenvolvimento e Inclusão Social.
A Economia Solidária também é alternativa a um modelo de desenvolvimento que produz riquezas gerando miséria, subordinando e explorando o trabalho e a natureza. No final do Século XX a economia solidária ressurge e se fortalece num contexto de crise do mundo do trabalho. Os altos índices de desemprego e precarização das relações de trabalho, contribuem para o alargamento da pobreza e da miséria de parcelas significativas da população. A reestruturação produtiva baseada nos avanços tecnológicos e nos modelos de gestão intensificadores de trabalho alterou de forma rápida e intensiva o mercado e as condições de trabalho. Milhões de postos de trabalhos foram extintos. Direitos sociais conquistados pelas lutas das classes trabalhadoras foram flexibilizados e eliminados. As condições de subemprego fragilizaram ainda mais a proteção de milhões de trabalhadores.

Nesse contexto, a empregabilidade e o empreendedorismo foram enfatizados pela perspectiva liberal. A primeira se refere à capacidade de reciclagem (atualização contínua) profissional e capacidade de adaptação a diferentes áreas de atuação. A segunda se refere à mobilização e exercício da capacidade empreendedora para iniciar novos negócios, para que os desempregados se transformem em pequenos empresários. Nos dois casos a responsabilidade pela permanência, recolocação e solução da crise do trabalho são atribuídas mais a cada indivíduo em particular e não ao sistema.

Já na perspectiva emancipatória, foram destacadas as variadas formas de organização do trabalho e da produção protagonizadas pelos setores populares. Experiências coletivas de trabalho e produção vêm se disseminando nos espaços rurais e urbanos, através das cooperativas de produção e consumo, das associações de produtores e empresas de autogestão. Nascem de uma atitude crítica frente ao sistema hegemônico e se orientam por valores não mercantis como a solidariedade e a democracia: “uma nova forma de organizar a produção, a distribuição e o consumo dos bens socialmente produzidos, o que significa redesenhar e exercitar, na prática das experiências alternativas, um outro projeto de sociedade que rompa com a lógica da competição monopolizadora excludente” (Bertucci, 2002: 19).

A economia solidária seria, portanto, uma alternativa capaz de combinar a inclusão social pela via do trabalho com a construção de uma nova concepção de desenvolvimento solidário. Algumas de suas características apontam para essa possibilidade:
• Não reduz o desenvolvimento à dimensão econômica, medindo o produto final pelo resultado mensurável apenas por indicadores econômicos. A economia é fundamentalmente social e de interesse público, pressupondo a implementação de ações endógenas de desenvolvimento que aumentem a produção e a distribuição eqüitativa de riquezas.
• A construção participativa da cidadania utiliza-se de diversos instrumentos de formação que consolidam gradativamente uma cultura de solidariedade, integrando direitos sociais, políticos e econômicos.
• A autogestão dos processos de trabalho, das definições estratégicas e cotidianas das atividades de produção e distribuição, da direção e coordenação das ações nos seus diversos graus e interesses, etc.
Esse processo vem também, ainda que timidamente, colocando outros conteúdos como a questão das identidades etnoculturais e a questão ecológica, como pressupostos do desenvolvimento sustentável, onde a produção, distribuição e preservação dos recursos naturais e sociais sejam dimensões de um processo de emancipação. Isso pressupõe um processo de re-educação em vista de uma nova cultura de solidariedade, valorizando as diferentes etnias, as relações de gênero, garantindo a participação democrática e respeitando o meio ambiente.

É nesse sentido que políticas de desenvolvimento territorial ou local devem ser incentivadas, considerando o fortalecimento da economia solidária como estratégia de inclusão social através da geração de trabalho e melhoria de renda, como alternativa aos processos de precarização do trabalho. Ou seja, como estratégia fundamental para superação da pobreza e outras formas de exclusão.

Os empreendimentos de Economia Solidária podem ser instrumentos fundamentais de construção de um projeto sustentável e solidário de desenvolvimento também no âmbito local ou territorial. A inserção da economia solidária nos processos de desenvolvimento territorial exige a combinação de um conjunto de ações estruturantes, de acesso e incentivo às alternativas locais de geração de trabalho e das outras melhorias nas condições de vida da população local, com as iniciativas já existentes de transferência de renda, como “bolsa família”, e outros programas sociais.

Inúmeros exemplos mostram que as potencialidades locais, principalmente as econômicas, podem ser aproveitadas, de forma solidária e sustentável através da identificação de cadeias produtivas da economia familiar e do fortalecimento de organizações associativas, da promoção de complexos cooperativos, redes de produção, beneficiamento e comercialização etc. Dessa forma, evita-se o risco de cooptação do discurso sobre os “arranjos produtivos locais” por parte apenas das grandes empresas que não se orientam pela lógica da solidariedade e sustentabilidade. A economia solidária, que baseia sua potencialidade nesses arranjos econômicos locais, redimensiona o seu significado transformando-os em arranjos produtivos, solidários e sustentáveis.

Finalmente, a perspectiva autogestionária dos empreendimentos de economia solidária pode ser o referencial de conteúdo e vivência prática orientadora da educação cidadã e da mobilização social nos territórios. A capacidade de gestão participativa deverá ser transferida para os espaços públicos, ampliando a participação cidadã nos destinos da comunidade ou sociedade local, através dos mecanismos e instrumentos de gestão e controle social das políticas públicas e do processo de desenvolvimento.

É de acordo com essas perspectivas e valores que a Secretaria Nacional de Economia Solidária, no âmbito do Governo Federal, deverá participar e propor políticas públicas para inclusão social pela via do trabalho e melhoria da renda das populações em situação de exclusão social.

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