segunda-feira, 20 de julho de 2009

Os mapas da alma não têm fronteiras

Por Eduardo Galeano*

Texto lido pelo autor na cerimônia em que recebeu a condecoração da Ordem de Maio da República Argentina, na embaixada daquele país em Montevidéu, no dia 9 de julho.

Montevidéu, julho/2009 – Permitam-me agradecer esta oferenda que estou recebendo, que para mim é um símbolo da terceira margem do rio. Nessa terceira margem, nascida do encontro das outras duas, florescem e se multiplicam, juntas, nossas melhores energias, que nos salvam do rancor, da mesquinhez, da inveja e de outros venenos que abundam no mercado.

Aqui estamos, pois, na terceira margem do rio, argentinos e uruguaios, uruguaios e argentinos, rendendo homenagem à nossa vida compartilhada e, portanto, estamos celebrando o sentido comunitário da vida, que é a expressão mais profunda do senso comum.

Afinal, e perdão por ir tão longe, quando a história ainda não se chamava assim, lá no remoto tempo das cavernas, como faziam para sobreviver aqueles indefesos, inúteis, desamparados avós da humanidade? Talvez tenham sobrevivido, contra toda evidência, porque foram capazes de compartilhar a comida e souberam se defender juntos. E passaram-se os anos, milhares e milhares de anos, e está claro que o mundo raras vezes recorda essa lição de senso comum, a mais elementar de todas e a que mais falta nos faz.

Tive sorte de viver em Buenos Aires nos anos 70. Cheguei corrido pela ditadura militar uruguaia, e me fui corrido pela ditadura militar argentina.

Não me fui. Me foram. Mas nesses anos comprovei, uma vez mais, que aquela pré-histórica lição de senso comum não estava de todo esquecida. A energia solidária crescia e cresce ao vai e vem das ondas que nos levam e nos trazem, argentinos que vêm e vão, uruguaios que vamos e voltamos. E, no tempo das ditaduras, soubemos compartilhar a comida e soubemos nos defender juntos, e ninguém se sente herói nem mártir por dar abrigo aos perseguidos que cruzavam o rio, indo para lá ou vindo de lá. A solidariedade era, e continua sendo, um assunto de senso comum e, portanto, era, e continua sendo, a coisa mais natural do mundo. Talvez por isso, sua energia, a sempre viva, foi mais viva que nunca nos anos de terror, alimentada pelas proibições que queriam matá-la. Como o bom touro do duelo, a solidariedade cresce no castigo.

E quero dar um testemunho pessoal de meu exílio na Argentina.

Quero render homenagem a uma aventura chamada “Crisis”, uma revista cultural, que alguns escritores e artistas fundamos com o generoso apoio de Federico Vogelius, onde pude dar algo do muito que me ensinara Carlos Quijano em meus tempos do semanário “Marcha”.

A revista “Crisis” tinha um nome bem deprimente, mas era uma jubilosa celebração da cultura vivida como comunhão coletiva, uma festa do vínculo humano encarnado na palavra compartilhada. Queríamos compartilhar a palavra, como se fosse pão.

Os sobreviventes daquela experiência criadora, que morreu afogada pela ditadura militar, continuamos a acreditar no que então acreditávamos. Acreditávamos, acreditamos, que para não ser mudo é preciso começar por não ser mudo, e que o ponto de partida de uma cultura solidária está nas bocas dos que fazem cultura sem saber que a fazem, anônimos conquistadores dos sóis que as noites escondem, e eles, e elas, são também os que fazem história sem saber que a fazem. Porque a cultura, quando é verdadeira, cresce do pé, como alguma vez cantou Alfredo Zitarrosa, e a partir do pé cresce a história. Só o que se faz a partir de cima é o poço.

A ditadura militar acabou com a revista e exterminou muitas outras expressões de fecundidade social. Os fabricantes de poços castigaram o imperdoável pecado do vínculo, a solidariedade cometida em suas múltiplas formas possíveis, e a máquina do desvínculo continuou trabalhando a serviço de uma tradição colonial, imposta pelos impérios que nos dividiram para reinar e que nos obrigam a aceitar a solidão como destino.

À primeira vista, o mundo parece uma multidão de solidões amontoadas, todos contra todos, salve-se quem puder. Mas o senso comum, o senso comunitário, é um bichinho duro de matar. Ainda há quem espera a esperança, alentada pelas vozes que ressoam de nossa origem comum e de nossos assombrosos espaços de encontro.

Não conheço alegria maior do que a de nos reconhecermos nos demais. Talvez essa seja, para mim, a única imortalidade digna de fé. Reconhecer-me nos demais, reconhecer-me em minha pátria e em meu tempo, e também reconhecer-me em mulheres e homens que são meus compatriotas, nascidos em outras terras, e reconhecer-me em mulheres e homens que são meus contemporâneos, vividos em outros tempos.

Os mapas da alma não têm fronteiras. IPS/Envolverde

* Eduardo Galeano é escritor e jornalista uruguaio, autor de As Veias Abertas da América Latina, Memórias do Fogo e Espelhos: Uma História Quase Universal.

(Envolverde/IPS)

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