segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Uma viagem no Tempo

Parece-me indiscutível que a nossa prática já consagrada de “fatiar o tempo” seja altamente positiva, pois, segundo o poeta Drummond, nos faz crer no “milagre da renovação” possibilitando que, a cada 12 meses, “tudo comece outra vez”, e é claro, livres que somos para sonhar, crer ainda que desta vez será bem do jeito que a gente quer e gosta.

E essa idéia é sempre muito alentadora. Quantos planos e sonhos nos alimentam a cada ano que sai e a cada ano que entra!

Porém, é importante nos darmos conta que a vida é também um ato contínuo no tempo, em que pese suas idas e vindas, seus laços e entrelaços, mais ou menos amarrados. Deixa marcas e muitas vezes traça perspectivas sem ao menos notarmos. E nada como uma espiada no passado para percebermos isso.

Apoiada no historiador e folclorista gaúcho Barbosa Lessa, comparto com vocês uma narrativa sobre o “começo de tudo”, que nos permite perceber que há muita relação entre tempos que findam, tempos que acontecem e tempos que ainda virão. Isso, se fizermos as devidas relações com o dito, com o acontecido, com o que poderia acontecer se... e com o agora anunciado porvir.

Vida, Tempo, Mitos, Lendas, Fatos e Feitos, imbricados entre si, interferindo e sofrendo interferências.

Baseado na mitologia do Rio Grande do Sul, o autor remonta ao século XVII, ao Deus Guarani, Nhanderuvuçu, nos permitindo sentir a forte simbologia dos mitos cuidadosamente criados pelos povos indígenas, com o poder de equilibrar a vida, nos anunciando desde então que a natureza nasceu para ter vida eterna e para atender as necessidades dos homens apenas e somente na medida do “só para poder viver”. Manter a necessária harmonia entre todos os elementos da natureza já estava colocado desde sempre. Mas os homens e mulheres desse mundo não quiseram ver e não quiseram ouvir.

Por isso fico com as duas formas de olhar e sentir o Tempo e a Vida. Fatiado, para não perder a sensação do doce “milagre da renovação”, mas também no seu contínuo e imbricado desenrolar, buscando constantemente a interligação entre passado, presente e futuro, seja pelos mitos e lendas ou pelos fatos e feitos de homens e mulheres de carne e osso ao longo de nossa triste, alegre, feia e bela história.

E não esqueçamos que o ano que se vai a cada ano, já faz parte de nossa história, e que também nesse pequeno interregno já construímos nossas lendas, nossos mitos e já realizamos muitos feitos. Cabe a nós saber ver e saber fazer as melhores conexões e também saber que alguns mitos precisam ser desmistificados para nos aproximarmos da harmonia e do equilíbrio tão necessários para o nosso bem viver. Coletivo e pessoal.

Abaixo, dois recortes do capítulo “Gênesis” do livro “Rodeio dos Ventos” de Barbosa Lessa. Esse capítulo é composto por 10 pontos assim chamados: (i) A criação do céu e da terra; (ii) O primeiro fazedor de coisas; (iii) O primeiro pajé; (iv) O primeiro casal; (v) Como surgiu a noite; (vi) Os dois caminhos do Tempo; (vii) A origem do fogo; (viii) O dilúvio; (ix) A tradição e (x) Eclesiastes.

Além desse capítulo, outros nos provocam a pensar sobre a relação entre a ação do homem e a "vingança da natureza", como o que fala do Îvîtu-Yepivu, "um vento em redemoinho", que, segundo a tradição indígina, só passou a existir no Rio Grande do Sul quando os "...primeiros europeus, no século XVII, vieram explorar os recursos naturais do rio Uruguai num nível além da simples economia de subsistência preconizada pela religião guarani...".

Boa leitura!
Iara Borges Aragonez.


A criação do Céu e da Terra

"no princípio, criou Nhanderuvuçu a atração das coisas, o Anhang dos anhangs, que era a força de Si Mesmo", diz. Mas viu Nhanderuvuçu que assim, só de atração, eram as coisas sem forma, cor, sem movimento e vazias. Então criou Nhanderuvuçu o oposto de Si Mesmo, Nhanderu-Mbaecuaá, a repulsão das coisas. E, por isso, nasceu a Terra, que é a mãe Nhandecy. E geraram Nhanderuvuçu e Nhanderu-Mbaecuaá no ventre de Nhandecy, as quatro-forças-em-uma, que dão equilíbrio à vida: Yara, a mãe das águas; Tupá, o guardião dos ventos; Curupira, o defensor das matas por si só nascidas e dos animais que vivem nas matas, nos campos, nas águas, nos ares; e Ceucy, a mãe das plantas plantadas e protetora da casa que nasce junto aos roçados. E, para que as coisas vivessem, criou Nhanderevuçu o Kayuá, o dom da palavra, pois uma coisa só existe quando há um nome para chamá-la. E então pode Nhanderuvuçu dizer: "Haja ervas, árvores, cipós; haja pássaros no ar, peixes na água, bichos na face da terra". E cada anhang (a atração das coisas) e cada forma, unidos, resultaram no nome dessas coisas. E havia só um Tempo e uma só Luz, ambos eternos. E, para o governo dos homens, geraram Nhanderuvuçu e Nhanderu-Mbaecuaá no ventre de Nhandecy, gêmeos civilizadores. E eles foram Nhanderiquei, o gêmeo primeiro, força do Sol, filho do Pai; e Tiviry, o gêmeo segundo, força da Lua, filho de Nhanderu-Mbasecuaá. E nem havia ainda lua, nem casa, nem plantas plantadas, nem mesmo o homem e a mulher; mas Nhanderuvuçu, que tudo sabe e prediz, soube e previu".


O primeiro fazedor de coisas


Sedento e faminto estava Tiviry, o gêmeo segundo. Então pediu Nhanderiquei a proteção de Yara, que lhe trouxe a água da fonte; e a proteção de Curupira, que lhe trouxe raízes, ovos de pássaros, a pitanga e a guabiroba, o doce mel da mirim. Faminto tornou a ficar Tiviry, porque esses bens eram poucos. Então pediu Nhanderiquei que Curupira lhe deixasse matar o peixe do rio, o pássaro do céu e os animais da floresta. Disse Curupira que, sob a luz, tudo nasceu para viver eterno; mas permitiu que matasse, desde que o só para poder viver. E inventou Nhanderiquei o arco, a flexha, o mundéu e a arapuca. Faminto tornou a ficar Tiviry, porque esses bens eram poucos. Então pediu Nhanderiquei que Curupira lhe deixasse derrubar um pouco de mata, para plantar sementes de Ceucy. Disse Curupira que a mata também é eterna; mas permitiu que derrubasse, desde que só para poder viver. E inventou Nhanderiquei o machado de pedra, para derrubar a mata; o sarquá, para furar o chão no receber da semente; e o balaio, trançado de taquara para encher, depois, com os frutos da colheita. E trouxe Ceucy a fartura das plantas plantadas e ergueu a casa que a mulher ia cuidar. E viu Tiviry que tudo isto era bom.

Barbosa Lessa

Historiador e Folclorista do
Rio Grande do Sul.




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