quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
NO URUGUAI NÃO DEU CERTO...
Monocultura do eucalipto muda paisagem e vida no Uruguai
Introduzido de forma intensiva a partir dos anos 90, com os primeiros projetos da indústria de celulose que então se alinhavavam por lá, o Uruguai hoje convive com a monocultura do eucalipto ressentindo-se de profundos impactos socioeconômicos. Com 1,1 milhão de hectares cultivados continuamente para dar conta da demanda de 1 milhão de toneladas de celulose produzidas anualmente pela empresa de origem finlandesa Botnia, o país já contabiliza prejuízos ao emprego, inclusive ao segmento do turismo.
O cenário é muito diferente de décadas atrás, em que o eucalipto convivia, em forma de ilhas, com a agricultura e a criação de gado. “Naquela época já se sabia que nada se cultivava a menos de 30 metros do eucalipto, pois cada árvore dessas consome de 30 a 40 litros de água”, lembra Victor Bacchetta, jornalista uruguaio que esteve nesta segunda-feira em Porto Alegre, lançando o livro “A Fraude da Celulose”, que mostra, em seis capítulos, num total de 225 páginas, o processo de empobrecimento socioambiental e cultural decorrente da adoção massiva da cultura do eucalipto.
Palestrante pela manhã no lançamento do Movimento Gaúcho em Defesa do Meio Ambiente na Assembléia Legislativa e, à noite, no Sindicato dos Empregados em Perícias e Fundações do RS (Semapi), Bacchetta fez uma retrospectiva das implicações da entrada e operação do setor de celulose em seu país, comparando com a situação brasileira. Segundo ele, está havendo, especialmente dos anos 70 para cá, uma transferência deste setor, dos países do Norte para os do Sul. “No Brasil, são 5 milhões de hectares de florestas plantadas, num processo que se iniciou no Espírito Santo e no sul da Bahia. Mas nos Pampas, este processo é mais recente, e aqui há um ecossistema totalmente diferente”, observa. “Essa decisão, de trasladar as empresas de celulose do Norte, dos países europeus, para o Sul, é tomada por razões de controle ambiental, porque na Europa se aplicam normas mais restritivas quanto à proteção ambiental, o que aqui não acontece”, sustenta.
Segundo o jornalista, a indústria da celulose necessita de escalas intensivas de produção para se sustentar: “Isso faz parte de uma condição imposta pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), que financia programas que, na realidade, institucionalizam a pobreza em um nível minimamente aceitável, e o Governo da Frente Ampla (do presidente Tabaré Vázquez) aceitou plenamente esta política.”
Impacto social
Para a produção de 1,1 milhão de toneladas de celulose, a Botnia, de acordo com Bacchetta, necessita de 200 mil hectares de florestas de eucalipto, que estão plantadas a um raio entre 150 e 200 quilômetros de sua planta. “Se nas décadas de 50 e 60 se falavam em latifúndios de 20 mil, 25 mil hectares, hoje as plantações de eucalipto formam áreas contínuas de 150 mil hectares. Devido a esta florestação, vivemos um segundo processo de esvaziamento do campo, com abandono de atividades agrícolas tradicionais e criação de gado e fechamento de escolas”, descreve.
O impacto mais relevante é sobre o emprego rural. Segundo o último censo do Uruguai, para cada mil hectares de florestas, são empregados 4,8 a 4,9 trabalhadores, enquanto que na criação de gado, para a mesma área, são 5,8 a 5,9 trabalhadores. “No Departamento de Rio Negro, onde está instalada a Botnia [a sede é em Fray Bentos, norte do país], a taxa de desemprego é de 13,8%, de acordo com o censo de abril de 2008, mais elevada que a média do Uruguai todo, que é de 7,6%”, compara o autor.
Atividades de fruticultura ocupam bem mais pessoas: 71 por mil hectares, o que chega a ser 14 vezes mais que a mão-de-obra para o plantio de eucalipto. Este número é ainda maior para a horticultura: 138 indivíduos empregados por mil hectares. “Com o avanço do eucalipto, perdem-se empregos em outras áreas e cresce a violência urbana”, resume Bacchetta, lembrando que na fábrica trabalham 190 pessoas. Ele destaca que houve prejuízos não somente às lavouras tradicionais, mas a atividades como apicultura, turismo e pesca, que perderam 1,4 mil postos de trabalho. “A fábrica está em zona franca, conta com vários benefícios fiscais”, afirma o jornalista, acrescentando que os trabalhadores que operam em atividades de poda, fumigação e outras relacionadas à manutenção do plantio de eucaliptos são terceirizados, fazem atividades eventuais e não têm assegurados cuidados com saúde no trabalho e riscos contra acidentes.
Questões ambientais
A fábrica da Botnia utiliza 86 milhões de litros de água diariamente e devolve 71 milhões. “O problema é que temos aí dioxinas e furanos, material cancerígeno e cumulativo mesmo em pequenas quantidades”, afirma Bacchetta. “O governo uruguaio adotou um limite máximo de emissões de dioxinas e furanos, e muitos técnicos dizem que esses índices são indetectáveis, mas isto é um eufemismo, pois o problema continua, mesmo sendo indetectáveis pelos instrumentos.” A principal causa dessas emissões, diz, é a opção das empresas por tecnologias que não eliminam totalmente o cloro do processo produtivo: “Existem tecnologias TCF, ou seja, processo totalmente livre de cloro elementar, mas não utilizam porque não é rentável. Além disto, as empresas de celulose alegam que com o processo ECF, ou seja, livre de cloro elementar, mas com compostos de cloro, conseguem um produto de melhores características do que com TCF”, explica.
Além das dioxinas, há problemas como emissões de nitrogênio e fósforo em elevadas quantidades, que ocasionam eutrofização, implicando aparecimento de algas e conseqüente mortandade de peixes e espécies vegetais. “O Rio Uruguai já estava comprometido ambientalmente com as elevadas quantidades de nitrogênio e fósforo dos efluentes de outras indústrias e das substâncias químicas empregadas nas lavouras. Agora, a situação se agrava”, nota.
“O argumento da Botnia de que as florestas de eucalipto capturam emissões de carbono, sendo portanto um mecanismo de redução da poluição do ar, diminuição do efeito estufa etc, não considera o fato de que as lavouras tradicionais absorvem muito mais o dióxido de carbono, pelas folhas e pelo solo. Não se pode comprar o papel apenas das folhas das plantas de eucalipto com o da biomassa do solo nesse tipo de absorção”, argumenta.
Incidente
A fábrica da Botnia entrou em operação em outubro do ano passado, depois de um incidente diplomático entre Uruguai e Argentina, pois a planta fica a 40 quilômetros de Gualeguaychu, na proivíncia de Entre Rios, Argentina, onde há uma forte tradição ambientalista. Em abril de 2005, o acirramento de ânimos entre os dois países chegou ao auge, quando moradores da cidade argentina fecharam a ponte que liga Gualeguayachu a Fray Bentos.
Conforme Bacchetta, o governo uruguaio explorou este incidente apelando para o senso de patriotismo, criando, para a opinião pública, a imagem de que quem estivesse contra a papeleira seria antipatriota. Isto, porém, não corresponde ao que de fato era o sentimento público, pois muito uruguaios se posicionaram contra a fábrica “sem deixar de ser patriotas”, atesta.
Há inclusive um julgamento internacional tramitando no Tribunal de Haia, porque o governo uruguaio não cumpriu o processo de consulta popular determinado pelo Tratado do Rio Uruguai, firmado entre este país e a Argentina. “A província de Entre Rios exigiu o cumprimento desse tratado, mas o Uruguai saiu com a resposta de que se tratava de uma decisão soberana, dele”, recorda-se Bacchetta.
Ovo podre
O cheiro tão conhecido no início dos anos 70 pelos moradores da Região Metropolitana de Porto Alegre (especificamente, Capital, Guaíba e arredores) marcou presença recentemente em Fray Bentos. De acordo com Bacchetta, desde que começou a funcionar, a fábrica da Botnia teve vários episódios de parada na produção por problemas técnicos, “e sentimos freqüentemente emissões de gases com cheiro de podre”. As paradas ocorrem praticamente todos os meses, segundo ele. “Várias vezes o cheiro inundou a cidade de Fray Bentos, e ninguém sabia de onde era. Enviaram dois técnicos de Montevidéu para saber a origem, e informaram depois que não era possível estabelecer a fonte”, afirma.
Mais e mais
Segundo a Organização Mundial das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO), o consumo de papel quintuplicou nos últimos 50 anos. Do que é produzido, 51% vão para o mercado de supérfluos (catálogos de shoppings, propagandas de lojas etc), e 41% para educação (livros, cadernos) e outras necessidades básicas (higiene). “Há um uso irracional de papel, e mesmo a informática, que se pensava iria diminuir o consumo de papel, teve efeito oposto, ou seja, fez aumentar o uso de impressos”, diz o jornalista. Conforme a FAO, uma pessoa necessita de 30 a 40 quilos por ano de papel par atender suas necessidades básicas, mas a realidade de consumo de vários países é muito superior a isto. No Uruguai, por exemplo, usam-se 36 quilos per capita por ano; na Finlândia, 325 quilos; nos Estados Unidos, 200 a 300 quilos; na França, 190 quilos. Seguindo essa lógica de mais e mais consumo de papel, a área cultivada com eucalipto, no Uruguai, subiu de 93 mil hectares, em 1990, para 949 mil hectares, atualmente (quase 1 milhão). Um aumento de mais ou menos dez vezes. O espaço entre as árvores é de três metros, e entre essas “florestas” e as casas remanescentes, de apenas 30 metros.
Bacchetta informa ainda que as terras adquiridas pelas empresas para o plantio de eucalipto o foram por preços de 13 a 14 vezes o valor de mercado. Assim, dificilmente se convenceria os proprietários a não vender. No cenário de Fray Bentos, não é difícil encontrarem-se casas abandonadas em meio aos eucaliptais.
A paisagem mudou, e o panorama vai mudar mais ainda. As empresas Stora Enso e Portocel (esta última, de Portugal) já compraram áreas no departamento de Durazno e estão iniciando plantio. Uma fábrica da Ence está sendo construída. E mais: as empresas Nipon Paper (japonesa) e International Paper Co. (norte-americana) declararam interesse em se estabelecer no Uruguai. Um dos pontos visados é próximo à Lagoa Mirim, na fronteira entre Uruguai e Brasil (RS). O Uruguai tem 17,6 milhões de hectares de área, e se todos esses projetos vingarem, cerca de 25% do território do país (mais ou menos 4 milhões de hectares) serão tomados por eucaliptos. Estâncias, gado, tradição da mais refinada cultura européia. Tudo isso impregna com boas emoções a memória do turista que visita o Uruguai, mas é uma paisagem que poderá ficar apenas em retratos do passado.
Fonte: Cláudia Viegas, AmbienteJÁ, 16/12/2008
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